quarta-feira, 22 de março de 2023

NEM TODO REI TEM REINADO

   


I

 

Andei uns tempos pensando

No porquê dos animais.

Mesmo que não haja dúvida,

Perguntar nunca é demais:

― O que seria dos bichos

Se não fossem os vegetais?

 

Animal tem atitude,

Animal faz umas gracinhas,

Faz dengo, caras e bocas,

Dá medo, nos faz cosquinha...

Está sempre na “telona”

E muito mais na “telinha”.

 

Animal dá mais ibope

Nos programas de TV

Dá movimento ao cinema

Faz a gente se entreter.

Mas todo bicho depende

Das plantas para viver.

 

Sem o cacto no deserto,

Sem o tronco no cerrado,

Sem a mata a proteger

Bicho peludo ou penado,

Nenhum vai sobreviver:

O nambu fica pelado,

 

A araponga vira um sino

Que diz “tou to-do... fer-ra-do”

A preguiça é presa fácil

Urutau é encontrado

O mico-leão é presa ―

Saboroso alvo dourado.

 

Mesmo estando em campo aberto

O capim disfarça bem

O tatu, a seriema,

Tantos outros ― mais de cem.

No cerrado até a onça

Tem a cor que lhe convém.

 

Milhares de animais

Usam a madeira caída

Para botar os seus ovos

Ou para curar feridas.

O que aparenta estar morto,

Vive “assim”, cheio de vida!

 

No seu ventre frio, inerme,

Abriga o tronco cansado

Insetos, aranhas, vermes,

E outros invertebrados...

Vivem também no seu cerne

O melete desdentado,

Pica-paus, serpentes prenhes,

O felino machucado.

 

Dentro d’água é a mesma coisa:

Guardam os galhos encurvados

Cágados, tucunarés,

Carás, acaris, pintados,

Sucuris engravidadas,

Rãs, jacarés-coroados,

Posturas feitas com as cores

Com que o mundo foi criado.

 

 

 

II

 

Toda planta é pão, sustento

Dos invisíveis bichinhos,

Do ratinho e do leão,

Dos insetos... Do peixinho

Ao gigante tubarão...

Da avestruz aos passarinhos.

 

Toda planta é pão, sustento

De todos, de alguma forma.

Mesmo o maior carniceiro:

Quando a presa, em si, deforma,

Mostra a origem vegetal...

Isso é lei. Isso é a norma.

 

Pois se planta não servisse

À preá e ao ratão,

Não haveria serpentes,

A seriema, o furão,

Os vários gatos-do-mato,

O gigante gavião.

 

E, mesmo a madeira podre,

É precioso maná

De milhares de insetos,

Vermes, fungos, guruçás

E micróbios... adubando

O que há por germinar,

E verdejando as verduras

Dos lambaris, da preá.

 

Não soubesse o vegetal

Dar sustento aos lambaris

Não haveria desovas,

O sauá, o apaiari,

Um festival de piranhas,

A traíra e o surubi.

 

Sem algas pros acaris

Os rios seriam mortos,

Os mares também seriam

Para tristeza dos portos.

E, não havendo poesia,

Os versos seriam tortos.

 

 

Abro aqui grande parêntesis:

Até certos minerais

Deixariam de existir:

O carvão de pedra, mais

A turfa e a rocha grafite

Que do chão velho se extraem

São fósseis de antigas plantas

De milhões de anos atrás.

 

― Mesmo o ar que inspiramos

Era muito diferente

No planeta primitivo

Coberto de lava quente.

Das primeiras algas veio

O oxigênio da gente!

 

― Muitas vezes a paisagem

É a obra acabada

De mil anos de labor

Da matéria vegetada.

Todo um morro construído

Por plantas acumuladas! 

 

― Não há solos se não há

Vida em meio aos minerais.

E os microsseres dependem

Dos pedaços vegetais.

Os solos onde pisamos

Já foram verdes trigais.

 

― E certas plantas, com o tempo

Decalcam um rastro rosado

No material das penas

De pernaltas do banhado

Ao comerem uns caranguejos,

Moluscos avermelhados.

 

Fica mais vermelho o íbis,

Fica rosa o colhereiro,

Ao comerem esses bichinhos

Pigmentados, do atoleiro,

Que consomem algas vermelhas

Desse hidratado canteiro.

 

― Antes de Einstein descobrir

Que energia dá matéria

Os vegetais já sabiam

Fazer coisas bem mais sérias:

Transformar luz em comida,

Diminuindo a miséria.


 

Quando a luz se fez matéria ―

A glicose acumulada

Por meio da fotossíntese

Nas sedes clorofiladas ―

É que foi possível ter

O reino da bicharada.

 

As plantas deixam seu rastro

Na comida do leão

Pois o reles gás carbônico

Que sai da respiração

No verdor da clorofila

Sofre uma transformação.

 

E seu átomo de carbono

Com a energia solar

Compõe a doce glicose

Que depois se ajuntará

Para formar o amido,

Que outro produto será.

 

Ao comer o vegetal,

Preás, ratos, ruminantes

Reconstroem, com o carbono,

Tecidos energizantes

E os que irão construir

Fortes corpos ambulantes.

 

Por fim, será do leão,

Via presas/predadores,

O carbono transformado

Em carnes de mil sabores...

Toda energia e matéria

Para os consumidores.

 

Enfim, todo ser vivente

Deixa um rastro vegetal:

O carbono é o tijolo

Da pirâmide vital.

Há um hálito de planta

No “rei” do mundo animal

Que devolve para o mundo

Seu carbono corporal

Quando, satisfeito, expira,

E no suspiro final.

 

― Ah, se planta não soubesse

Transformar a luz solar

O vasto Reino Animal

Deixaria de se fartar...

― Nem sequer papel teria

Pra estes versos eu botar.

 

E para finalizar

O parêntesis sonífero,

É bom lembrar que “animal”

Não é só “grande mamífero”:

O reino inclui uns milhões

De microsseres prolíferos.)

 

 

 

III

 

Retomando o trilho, rumo

À questão inicial,

É preciso uma resposta

Para se ter o final.

Mas não há fim nessa história:

Não há tristeza nem glória,

Pois não há Reino Animal,

 

Nem Monera, nem Protista,

Nem os reinos Fungi ou Plantae:

As bactérias adoram

A fresca sombra das plantas.

Para os fungos, os vegetais ―

E, também, os animais ―

São seu almoço, sua janta.

 

E os arteiros animais?

Nem é preciso dizer!

As plantas precisam deles

E eles não sabem viver

Sem esse verde cheirinho,

Esse rico temperinho,

Esse eterno florescer.


 

IV

 

Ninguém é rei de ninguém!

Há de findar os reinados.

 

Dá uma flor pra mim, tem dó

Desse poeta enrolado!

Dá em forma de sorriso

(Esse carinho preciso)

― Pra que eu me sinta agraciado neste verso

                                     [de pé quebrado.

 

 

                                        Paulo Robson de Souza

 


 


(cordel extraído do livro Síntese de Poesia. 
Paulo Robson de Souza, Editora UFMS, 2006)


 


Desdobramento desse cordel, clique aqui.

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