domingo, 31 de janeiro de 2021

ANTES QUE EU ESQUEÇA: MONTANHA

 


Guardei um pedaço

De Montanha em mim

(A cidadezinha

– Era uma cidadezinha quando a senti –

A cidadezinha

Do norte capixaba).

 

Havia um circo troncho

Palhaços da melhor estirpe, calhambeque explodindo

Leões,

A trapezista

E a tristeza da partida pela estrada poeirenta

Do circo e do circense que nele morreu...

 

– 1969? Não me lembro bem: moramos nesse lugar ígneo entre 67 e 70 (sou de 61). Aliás, uma das poucas lembranças com fundo musical que tenho: “California Dreams” e o circo trilhando a estrada poeirenta para além do rio...

Carros eram lavados no rio. Caminhões também... Mais que a lembrança da imagem, me vem o forte cheiro de combustível boiando, arco-íris deitado nele (o rio)...

Havia um grande lajedo, nele escrito “Só cristo Salva” e “Casas Cazelli” (juro que não é merchandising!). Nessa casa havia tecidos chinfrins postos em ziguezague sob a marquise, mais enfeitando do que expondo a mercadoria.

Flashes que não me saem da memória, não sei porque, de tão insignificantes: a passagem de uma perua com quatro ou cinco japoneses de óculos, magros e altos indo ao lajedo instalar acho que uma antena (primeira vez que vi pessoas de origem asiática, só outra novidade me foi maior: ver o teco-teco logo após o pouso, que meus amigos diziam ser de papelão). O sangue de um advogado na areia da rua, morto pelo pai da minha colega de escola por causa de desavença de jogo de aposta, corrida de cavalo, algo assim – naquela tarde o sino da igreja soou como nunca e para sempre nos meus ouvidos, e senti pela primeira vez uma tristeza pela morte alheia que eu não sabia explicar... O vizinho cego por uma pedra (ao marretar paralelepípedos de granito) cantando hinos de louvor em um culto...

Outros instantes que nunca me esqueci: a menina morena, magrela e de testa larga (a apelidamos de Testa de Boi Gir, que malvadeza!), essa menina sendo levada à nossa escola pelo pai numa charrete muito bonita, cavalo castanho “esquipando” como quê na nossa rua. Minha mãe voltando tarde da noite da casa do vizinho que tinha televisão, encantada com a chegada do homem à Lua... As meninas da casa da frente ‒ Gilca, Milca, Ilca e mais duas cujos nomes me esqueci, todas atingidas por essa decisão patriarcal de nominar ‒ brincando de “drama” (teatrinho) com minha irmã Márcia na nossa garagem. Minha coleção de maços de cigarro (cheirinho bom!) escondida sob a geladeira a querosene que sustentava um rádio cantando “90 milhões em ação” depois de a população largar a TV da praça em festa, após o Brasil 4 x 1 Itália; a bomba de 500 sendo estourada por um torcedor (tinha esse nome porque era a mais cara de então; só os adultos podiam comprá-la, de tão perigosa).

Do amigo cabeludo e de olhos verdes do meu tio Britto cagando no buraco errado após uma bebedeira – o bidê que eu tanto brincava de alguma coisa com seu chuveirinho ao contrário –, disso eu também não me esqueço. Nem da menina Alba Valéria que morava na casa ao lado e seu irmão Alvinho que, pura malvadeza, o apelidamos de Bufa Torta porque passou a mancar após pisar num caco de vidro. Nem da espinha madura (que eu morria de vontade de espremer) na face da minha querida professorinha Irmã Paulina, nem das músicas que entoávamos em fila no pátio do Colégio Sagrado Coração, sob o olhar cuidadoso da diretora, uma madre de óculos intimidadores cujo nome esqueci: “Desperta no bosque / Gentil primavera / O ar está perfumado / Com flores de manacá / Trá-lá-lá-lá-la Lá-la...”, ou ainda “No Inverno a cigarrinha / Deixou então de cantar / Procurou a formiguinha / Para a sua fome lhe mataaaar”.

Em Montanha desse tempo dormiam cinco a dez toras de madeira no fim da nossa rua, talvez abandonadas por alguma serraria. Nelas moravam as “batixós” (como chamávamos as lagartixas), que vez em quando eram vítimas do nosso “bodoque” feito de câmara-de-ar da melhor qualidade, a tal borracha que não se cansava. O meu irmão Jairo e o inseparável primo Ciro eram os campeões na caçada aos pobres bichinhos que, junto a calangos e algumas rolinhas, proporcionavam-nos deliciosas fritadas, assim como os tizius que fazíamos se espatifarem no muro branco da garagem de ônibus após afugentá-los.

Havia na porta de casa um fícus indiano cercado por quatro tábuas que eram bancos – lembrei-me agora. No quintal, um pé de maçã muito esguio, crescendo no centro de um caqueiro (termo baiano para o recipiente de barro usado para evitar formigas, como se um fosso) e que se recusava a frutificar. E um porco duroc que, de tão grande, meu pai se equilibrava de pé no seu dorso, para se exibir. Havia um viveiro onde eu dava leite aos filhotes de tatu-galinha e cuidava de um coelho alaranjado e da galinha rhodes que Sinhô Mascate me dera. Num canto havia bananeiras onde eu e meus irmãos ficamos seminus, lambuzados de BHC com banha-de-porco, um disparatado tratamento para sarna da época que deve, sim, ter-me deixado sequelas. Em frente à cozinha havia uma espécie de galpão revestido de cimento queimado onde escorregávamos no dia da lavagem, usando para isso água retirada de um poço com bomba manual.

De fato, o ponto de vista é único, intransferível: são dos meus olhos e, certamente, de nenhuma das outras crianças que éramos, a imagem que ficou de uma tarde típica de verão, sol seguido de chuva – casamento da viúva – em que encontramos gatinhos recém-nascidos em uma carcaça de carro abandonada perto do cinema. E é só minha essa lembrança, porque foi em mim que doeu: a matinê que não houve, porque minha mãe não deixou que uma prima grande e de cabelos bicolores me levasse ao cinema – certamente por falta de dinheiro – e eu chorei muito... Como chorei no dia em que meu primo Carlos me sentou sobre a chapa quente do fogão de lenha...

Dessa época não há fotografias, porque a novidade era o tal monóculo que o tempo e os fungos logo se incumbiram de pulverizar os pigmentos depositados sobre o acetato.

Agora vem minha mãe, janeiro de 2018, me dizer que passamos fome por causa do abandono do nosso pai – que foi cuidar de negócios em Linhares, é bem verdade; o pai que era ao mesmo tempo amoroso, devagar, trabalhador, divertido, bruto, sonhador, exigente, esquecido e aventureiro nos deixou nessa situação. Ela me conta da vizinha Dona Regina (de Seu Manoel, segundo me disse) que nos trouxe comida por cima do muro, uma vergonha para quem tivera fazenda no sudoeste da Bahia e uma infância de fartura – própria de quem tem chuva e terra para cultivar. Da grande dívida numa vendinha que funcionava numa espécie de quiosque lá para as bandas do bairro Fundão cujas paredes e as próprias rodas eram de madeira, isto eu me lembro. Mas a história da comida por cima do muro me doeu fundo, doutor.

PRS, 18.1.2018

(Da série Poesia Todo Dia!)


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