Tem gente
que só enxerga
o que se
bota na mesa
só tem
olhos para o belo
se
esquecendo da dureza
que é
limpar toda sujeira
feita pela
boniteza.
Não há
feio nem bonito
nesta
sábia natureza.
O que seria do mundo
se não
fossem os urubus
que, para
os ignorantes,
são filhos
do belzebu?
Saneando,
comem o feio
e o belo
que deu chabu.
Se beleza
não põe mesa,
sua beleza
é hors-concours.
“Peraí”,
você está rindo?
Já lhe
explico. Calma lá!
Toda
criação é bela.
Você há de
concordar:
cada beleza
depende
de cada
jeito de olhar.
Dependendo
do momento,
ave mais
bela não há!
Veja só o urubu-peba:
tem a cara
matizada
predominando
o amarelo,
de laranja
e azul ornada.
Vendo de
perto parece
por grande
artista pintada.
Chamam cabeça-de-sola
essa espécie
maquiada.
Urubu-peba adulto (Cathartes burrovianus) |
Mais
esguio e não tão preto
quanto o
mais comum da lista
de urubus
da minha infância
em Vitória
da Conquista,
Cathartes
burrovianus
fez de mim
sua conquista
(é assim
que ele é chamado
pelos
nossos cientistas).
lembra o
peba na planada
mas sua
careca é vermelha
e sua nuca
é azulada.
Pelo nome
o bicho gosta
de uma
carne mal passada.
Mas
confesso que não viaté hoje sua caçada.
Mas sua
cor não é tão negra
quanto o
azulado chupim.
Tem um voo
tão elegante
quanto o
pequeno tuim
o dito Cathartes
aura
(a ciência
o chama assim).
Como é bom
vê-lo planar
no disco
do Tom Jobim!
No Pará ele é jereba
e no Rio
ele é campeiro.
Assim como
o urubu-peba,
acha o
morto pelo cheiro.
Acredite
se quiser:
o distinto
cavalheiro
gosta de
comer coquinhos
saídos do
dendezeiro.
Já Cathartes
melambrotos
é o urubu-da-mata.
Tem a
cabeça amarela
de uma
palidez inata.
Tem nome
nobre – fidalgo –
mas não
vive de bravatas:
na
Amazônia os bichos mortos,
usando o
olfato ele cata.
Quem já viu o urubu-rei
no alto
céu buscando sal,
nunca mais
esquecerá
dessa cena
tão real
como eu vi
na Bodoquena
em uma
tarde sem final.
Sarcoramphus
papa!
Eis
o seu nome
oficial.
Depois do
condor-dos-andes
(que aqui
não se reproduz)
é o que
busca o céu mais alto
e o maior dos
urubus.
Num
“banquete” há hierarquia
para não
virar angu:
come a
carniça primeiro,
retalhando
o boi zebu.
O refinado
ministro
também é o
mais enfeitado:
quando
jovem é cinza-chumbo
quando
adulto é esbranquiçado.
Tem
bolotas na cabeça
e os olhos
são azulados.
Talvez por
se achar um rei
tem um
papo exagerado.
Já o urubu-comum
é
justamente o contrário:
parece que
faltou tinta
na
despensa do berçário
pois o
adulto é todo preto
mas é
branco no fraldário.
Em termos
de quantidade
ele é o
mais ordinário.
Tão
numeroso, parece
batalhão
de infantaria
a
enfrentar, nos lixões,
carniças e
porcarias.
E Coragyps
atratus
– ave de
grande valia –
é o seu
nome de guerra
nos livros
de biologia.
Ah! Nos
céus da caatinga
dá uma
confusão danada:
há um
gavião escuro
com barras
acinzentadas
na sua
cauda elegante
como se
sinalizada.
É um pássaro? Um avião?Um urubu na caçada?
É o Buteo albonotatus!
Ele é um
grande imitador
do planar
de um urubu...
Ele é o "super" caçador,
pois assim não espanta a presa
–
mimetismo de valor.
Gavião
sem-vergoinha,
espertinho
predador!
É um
gavião bonito,
tem
feições elaboradas...
Mas mesmo
desengonçados,
com aquela
cara lavada,
os urubus
são mais belos
pelas
vistas desarmadas.
Existe um
charme, sei lá,
no mundo
da urubuzada!
Ah, se o
Tom Jobim pudesse
ver o que
vi inda agora:
briga de
um burrovianus
com um
carcará que chora
por conta
de um peixe morto
pertinho
do Campo Dora.
No ar deu
uns petelecos,
mandou o
carancho pra fora.
Dizem que
todo urubu
é parente
das cegonhas.
Eu bem que
desconfiava
pois o
bicho é sem-vergonha
dado a
levar cururus
na viola
com os que sonham
com a
“zoofesta” do céu
contada à
beira da fronha.
Urubus têm
atributos
que lhes
facilitam a vida:
carecas
até o pescoço,
mesmo se
buscam a comida
nos
ventres apodrecidos
das
criações falecidas
não se
sujam pois sua cara,
naturalmente,
é lambida.
Chega a
ser até engraçado
quando vão
se alimentar
enfiando
sua cabeça
dentro
daquele lugar.
Eles
começam por onde
nosso pão
vai se acabar.
Eis o
“papo de urubu”
do ditado
popular!
E na hora
do sol forte
antes da
vagem rachar
abrem as
asas contra o vento
sobre um
toco do lugar
como faz
toda cegonha
pra poder
se refrescar.
Cagam nas
próprias canelas
pro calor
se dissipar.
Os urubus
se comportam
de modos
muito diversos:
brigam,
xingam ao seu modo,
pela brisa
são dispersos.
Fazem
piruetas de amor,
no
profundo azul imersos...
São tantos
comportamentos,
que não
cabem nestes versos.
Muito
poderia dizer
do
“pessoal da limpeza”.
Você
também tem um monte
de
histórias, sim, com certeza.
É por isso
que repito
que beleza
não põe mesa.
Não há
feio nem bonito
nesta
sábia natureza.
Do livro Poesia Animal (com Sidnei Olívio), Editora UFMS/ Sterna, 2003.
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Nota
Essa quase moda de viola teve como base o livro Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick (Nova Fronteira, 1997) e observações de campo. A ornitóloga Adriani Hass gentilmente fez a revisão técnica do poema.
Saiba mais
urubu-peba (urubu-de-cabeça-amarela): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-amarela
urubu-caçador (urubu-de-cabeça-vermelha): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-vermelha
urubu-da-mata: http://wikiaves.com.br/urubu-da-mata
urubu-rei: http://wikiaves.com.br/urubu-rei
urubu-comum (urubu-de-cabeça-preta): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-preta
Buteo albonotatus (gavião-de-rabo-barrado): http://wikiaves.com.br/gaviao-de-rabo-barrado