quarta-feira, 20 de junho de 2012

O CASAMENTO DOS BURITIS



Cordel dedicado aos jornalistas 

Allison Yshi (educador ambiental) e 
Francisco Anselmo de Barros (in memoriam, ambientalista, 
companheiro na luta pela preservação do 
buritizal da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 
em Campo Grande


O garoto buriti
Sonhava em crescer bastante
Encontrar a sua amada
E, no anual rompante,
Espalhar-se nas veredas,
Formar seu lindo semblante.

Na lagoa de águas mornas
Crescia todo encharcado,
Sonhando em ter o mais belo
Cacho de flores dourado 
Durante as águas de março –
O mais belo do Cerrado.



Um cacho formoso, longo
Como loura cabeleira
Balançada pelo vento
Na paisagem brasileira.
Cacho de flores miúdas
Mas bastantes, lisonjeiras.

Queria multiplicar
A sua bela utilidade
Produzindo descendentes
Úteis à posteridade –
Juntos, demonstrando a força
Desta coletividade.

Ser Grande Buritizal
De um tal Córrego da Prosa
Ser a parte grande de um
Grande Sertão, todo prosa –
Ser cenário do romance
Do grande Guimarães Rosa.

Generoso, bem queria
Fazer, nos bichos, carinho...
Com sua sombra saborosa
Dar abrigo aos passarinhos,
Ser casa de lagartixas 
Tornar-se cheio de ninhos.

Sonhava em ter as alturas
Lamber, no céu, as alvuras...
Ser o caminho das águas
Do céu, do rio que murmura...
Ser, de longe, o indicativo
Do lugar das águas puras.

Dar um gostoso palmito,
O vinho de buriti,
Precioso artesanato...
Além disso, ser daqui
A mais bela das palmeiras
Desde o tempo dos tupis.

Entrementes, num riacho
Não muito longe dali
Sonhava esses mesmos sonhos
A menina buriti.
E dizia: “Onde estará,
Plantado, meu curumi?”

Suas folhas – grandes leques
Dando vida e voz ao vento –
Sonhavam ser a coroa
De perfeito caimento
Sobre o majestoso estipe
Segurando o firmamento.

Sonhava mais, dadivosa:
Dar ao povo e à bicharada
Cachos de cocos castanhos
De polpa rica, dourada...
Dar óleos, doces, sorvetes,
Farinhas vitaminadas.

Dar-se, inteira, sem bravata:
Ser flor e fruto, comida
Da ararinha manilata
E o tronco oco, guarida
Dos seus ovos cor de nata,
Ressemeando outras vidas.

Ambos sonhavam, enfim,
Ser, pra sempre, bem casados
Pelos polinizadores
Que trazem o pólen dourado...
Ter mais de mil descendentes
Mesmo em “quartos separados”.

Crescido, o buritizal
Prover profícua linhagem,
Ser uma caixa d’água viva
Pra ser gasta na estiagem.
Ser algo que não tem preço:
Um colírio – a paisagem.

E, reinando nas veredas,
Aninhar o andorinhão,
Ofertar, da palha, a seda
Aos índios, aos artesãos.
Segurar o negro e rico
Sedimento e a inundação.

Ver as falsas andorinhas
Entrando em suas folhas mortas
Como se fosse um pombal
Bem alto, imenso, sem portas,
Perscrutando o céu profundo
Que suas asas finas cortam.

No seu senso de abrigar,
Ser uma residência plena,
Ver repletos seus andares
De seres – diversas cenas:
No térreo, bichos do chão;
Nas copas, bichos de pena.

No seu senso de manter
Os processos naturais,
Suas raízes: um filtro
Pra reter os minerais,
Dando plenas condições
Para vários vegetais.

Sendo, enfim, buritizal,
Ver a riqueza da flora
A brotar nos seus domínios –
A que adornava as auroras
Rubras do Córrego da Prosa
Da Campo Grande de outrora.

Porém, antes disso tudo
Vieram dragas, trator,
Avenidas sem sentido,
Contra o Plano Diretor;
As barragens nas nascentes,
A cultura sem labor,
O riacho assoreado
E os grãos de falso valor.

Fim de um sonho, de certezas
Ante a ganância e o mal.
Nenhum casamento houve –
Nem pensar, buritizal:
Ele pereceu sonhando,
Ela morreu no final.

Um desejo factível
Mas que foi adormecido.
Isto tudo aconteceu.
Isto tem acontecido.
O sonho que nunca foi
Mas deveria ter sido.


                   Paulo Robson de Souza

(Do livro Síntese de Poesia, que integra o material paradidático Coleção valorizando a biodiversidade no ensino de botânica, Editora UFMS, 2006, organizado pelo autor).


_________________________

NOTAS

1- Esse poema, originalmente publicado no livro O casamento dos buritis e outros cordéis e, mais tarde, na revista ARCA (Revista do Arquivo Histórico de Campo Grande - n. 14, 1991), foi inspirado nesta curiosidade: o buriti, biriti, miriti ou carandaí-guaçu (Mauritia flexuosa, antiga Mauritia vinifera) é uma palmeira dióica, ou seja, as flores masculinas são encontradas em uma planta e as femininas em outra. Por isso, somente a planta masculina produz pólen e a feminina produz frutos. Segundo os botânicos Arnildo Pott e Vali Joana Pott (2004), é a “árvore da vida” do naturalista Humboldt, pois dela tudo se aproveita. Atinge até 15 metros de altura.  O buritizal forma um tipo de ecossistema único: além de mediar uma grande quantidade de relações entre diversas espécies animais (vertebrados e invertebrados que ali vivem ou encontram condições ideais para reprodução e alimentação), também tem a função de manter a estrutura e a riqueza dos solos: é que o buriti tem raízes do tipo pneumatóforo, que permitem à planta respirar nas áreas alagadas; essas estruturas, que formam um emaranhado na lâmina d’água, servem como refúgio a pequenos peixes e invertebrados e atuam também como filtro, agregando partículas minerais e evitando o assoreamento. Extensos buritizais ocorrem no Ceará, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e na Amazônia, em terrenos alagadiços.


Saiba mais clicando aqui:  Buriti - Mauritia flexuosa, artigo de Arnildo Pott e Vali Joana Pott. Fauna e Flora do Cerrado, Campo Grande, outubro 2004.

2- Clique aqui para obter a versão para impressão A4: https://skydrive.live.com/redir?resid=A6A44B9E787BB20B!150&authkey=!AGDXrTrTxz1IOow



Licença Creative Commons
 O trabalho O Casamento dos buritis de Paulo Robson de Souza foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.
Com base no trabalho disponível em paulorobsondesouza.blogspot.com.br.

5 comentários:

  1. Gente, ainda na aula de TIC, meus colegas Mykael, Mara, Diogo, Ingrid e eu, comentávamos sobre os buritis, e hoje eu encontro uma relíquia dessa! Parabéns Professor Paulinho, excelente trabalho. Amei a riqueza dos detalhes das informações em seu poema! <3

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    1. Olá Claudete, que bom chegar no dia seguinte à aula noturna e encontrar um comentário assim, animador, atencioso, demonstrando sua sensibilidade para com aqueles seres que muita gente trata como "mato desprezível"... Buritizais poderiam ser chamados de fábricas de água!!! Água grátis! Grande abraço. Grato.

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  2. Olá, Paulo
    Um feliz encontro com a poesia e com minha infância. Nasci em Vitória da Conquista, muitas lembranças! Atualmente moro no Rio de Janeiro. Amei encontrar seu poema na Revista Ciência Hoje, uso muito com meus alunos.

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  3. Olá, Vera, minha conterrânea! Que bom! Grato pelo acolhimento! A equipe da Ciência Hoje das Crianças é muito bacana, faz um belo trabalho de valorização (também!) da poesia.
    Abraços na turminha da sua escola!!

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