domingo, 5 de agosto de 2012

DAS CORES DA ARARA-AZUL FEZ-SE O VERBO


Para Neiva Guedes
e o mestre do chamamé Dino Rocha



Primeiro Ato
         O pano de fundo


O Pantanal é azul
quando as águas se esparramam.
Curioso é que sem chuva
inda assim mergulha a grama
nas águas que vêm suaves
dos planaltos que as derramam.

Mesmo na cheia tem sede
do azul do mar abastado.
Para ficar hidratado,
pra ficar mais azulado,
é do céu que o Pantanal
engole o azul emprestado.

E esse “Mar dos Xarayés”
– índios com jeitos andinos –
fica multicolorido
no período matutino
tantas são as flores d’água
sobre o espelho cristalino:

são tapetes amarelos
sobre o piso cor de telha,
bordados de flutuantes
ramos e folhas vermelhas...
São flores brancas, lilases,
contendo verdes abelhas!

Grávido dos elementos
que darão sustento à vida,
o solo parece o Nilo:
da lama brota a comida
de peixes de toda cor,
de aves multicoloridas.


Segundo Ato 
         Ciclos e tramas


As cores do Pantanal
a água desencadeia.
Se na França roupa e cor,
frio e calor as norteiam,
a “moda” dele é ditada
pelo ciclo seca/cheia.

Se na cheia ele se veste
de um lençol d’água azulado,
na seca lhe deita um morno
manto de campos dourados.
Névoa no céu é um tecido
pelo sol avermelhado.

Por volta do mês de agosto
a seca tem tom pastel.
O sol é bem mais vermelho
e maior no cinza véu.
Há quem se aproveite disso
para fazer fogaréu!

Lá pelo mês de novembro
– fins de dezembro talvez –
a cheia vem de mansinho
e em abril já se desfez
pra ciranda colorida
recomeçar outra vez.


Terceiro Ato
         A primeira pessoa


É nesse vasto cenário
que me encontro embevecido.
Vim da Cidade Morena
buscando o desconhecido.
Um fotógrafo da vida,
pela vida convertido.

Eis-me aqui! – eu me apresento.
Sou caçador de miragens.
Todo dia vejo a luta
da luz com as sombras... Imagens...
Tento gravar no papel
as mais bonitas paisagens.

Recolho conhecimentos,
junto uns versos de cordel
num caldeirão para o ensino...
Queira Deus ser menestrel
ao ensinar Biologia...
Eis-me aqui! Eis meu papel!


Quarto Ato
         A segunda pessoa e os diferentes encontros


Eis que um bando desprendido
de grandes e azuis araras
faz rasantes sobrevoos
sobre as marrons capivaras.
Céu e água se confundem
em meio à plumagem rara.

E quando tento enquadrar
o bando na objetiva,
vejo é uma cortina azul
abrindo uma cena afetiva,
emprestando ao quarto ato
verdadeiras cores vivas.

Vejo uma mulher morena
escalando um manduvi
pra ver filhotes de arara,
seus parasitas cricris.
Eu pergunto. Ela me conta
as coisas que conto aqui.

Diz-me que foi por acaso
que começou sua lida
de pesquisar as araras
que eram muito perseguidas.
Ao proteger as araras,
elas mudaram sua vida!

É a maior das araras.
Quase foi à extinção.
Hoje vive mais tranquila
com a extensiva ocupação
das bordas do Pantanal
até o sul do Maranhão.

O corpo inteiro é azul
feito os campos inundados.
O bico é grande, bem forte.
Sobre o olho esbugalhado
há um círculo amarelo
feito o sol eclipsado.

Há, detrás do bico, uma fina
meia-lua amarelada.
Quando corta a bocaiuva
(coco de polpa dourada),
parece que a lua é cheia
e no bico foi travada.

Gênero Anodorynchus,
espécie hyacinthinus.
“Da cor azul do jacinto”
seria um jeito traquino
de traduzir o seu nome
científico, latino.

Nossos índios a chamavam
de araraúna por que
vista bem de longe é preta
(quando contra o céu se vê).
Mas quando é vista de perto,
cadê o preto! Cadê?!

Um barulhento animal,
visualmente exibido,
grita muito no namoro
ou se um risco é pressentido.
Chama os outros quando encontra
coquinho amadurecido.

Come muito bacuri,
coquinho esverdeado.
Quando tem, é bocaiuva.
Gosta do cristal salgado.
E come o coco que cai
do cocô que cai do gado.

Gosta de dormir em bando,
em local satisfatório.
Ao cerrar o véu da tarde
é um grande “falatório”
de duzentos indivíduos
na árvore-dormitório!

Realmente o amor é lindo:
o casal é muito terno
e copula ao deus-dará
quando chega o fim do inverno.
– Parece final de filme
com juras de amor eterno!

No oco do manduvi
– sua casa preferida –
o casal escava o ninho
na madeira apodrecida.
Choca, a fêmea pouco sai:
o macho lhe traz comida.

Quando chega a primavera
são postos dois ovos brancos.
Os ninhegos nascem cegos,
frágeis, nus... parecem mancos.
De vez em quando dá berne
na cabeça e até nos flancos.

Assim, moles, indefesos,
são criados pelos pais
que regurgitam uma papa
que dos coquinhos se extrai.
E com os pais saem voando
por um ano e meio ou mais.

Depois os “adolescentes”
em outras áreas se instalam.
O bando até lembra uma banda
pelo tanto que badalam.
Só depois dos nove anos
são maduros, se acasalam.

Uma arara-azul saudável
vive por quarenta anos.
Mas fora da natureza
tudo só lhe causa danos
quando é comercializada
por ignóbeis humanos.

Nesse tempo enfrenta fortes
predadores indomáveis.
Desde a sua reprodução
trava lutas memoráveis,
vence até gambás famintos...
mas o homem é implacável!

E foi mais ou menos isso
tudo o que ela me contou.
Findo o nosso bate-papo,
tal qual fim de grande show,
das frondes da bocaiuva
um bando azul transbordou.

E eu repasso o que aprendi
– êh, mania de professor! –,
sabendo que muito existe
pra se descobrir, se expor.
Pois ninguém nasce sabendo...
e ninguém morre doutor.

Doutor não é quem ensina
o que diz saber, com apego,
mas quem sabe que não sabe,
como se fosse um ninhego.
O saber está na clara
visão tosca, ignara,
natural do desapego.

Reaprendi com as araras
o tal pensamento grego.


Quinto Ato
         A lenda


Diz uma lenda bem recente
– acho que inventada agora –:
o amarelo-sol da arara
azul é a marca da hora
em que a luz tocou sua cara
jacintino-azul, tão clara,
quando o sol tingiu a aurora
num momento reticente...




Sexto Ato
         Gênesis 2, Versículo(s) 14


Seria Deus um pintor
inspirado que, primeiro,
coloriu o Pantanal
para ter um tabuleiro
de cores pra pôr no mundo
ante o momento segundo...
Seria Deus pantaneiro?

E será que a araraúna
atendendo ao Seu apelo
forneceu o azul do mundo
antes até de o céu sê-lo?
Foi a grande arara-azul,
sob o Cruzeiro do Sul,
o Seu mais lindo modelo?


Sétimo Ato 
         Gênesis 2, Versículo(s) 18


Inspirado desenhista,
com a pena da azul arara
riscou uma planície rara,
pantanal, impressionista.
Sendo uma cor de encher a vista,
soprou plumas no aguaceiro
sobre o solo boiadeiro.
Viu que era bom! Animado,
fez um planeta azulado
de um pedaço pantaneiro.

Se um bando de araraúnas
bailam no céu, entre gritos,
fica o Pantanal pintado
de riscos azuis, bonitos...
E se vê, perante a tela,
o mais justo gabarito
para pintar um planeta
azul, de céu infinito.





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Do livro Poesia Animal (Editora UFMS e Sterna, 2003), com Sidnei Olivio.


Clique aqui para ouvir o chamamé Arara Azul com o sanfoneiro Dino Rocha, que incluiu na sua composição o trecho final deste cordel (Sétimo Ato), recitado por Aurélio Miranda:

Conheça o trabalho da ornitóloga Neiva Guedes / Projeto Arara Azul acessando: