sábado, 24 de dezembro de 2011

O DESMEMORIADO



Vamos ver se me lembro... Caçuá (do tupi) é um tipo de cesto grande, geralmente feito de ramos de cipó ou vime rusticamente trançados, usado no transporte de alimentos e outros materiais nas fazendas. É carregado por burro ou jumento, equinos muito resistentes ao trabalho pesado. Isto eu me lembro bem: o caçuá é pendurado ainda vazio na cangalha, por uma alça, formando um par. Em seguida a carga é distribuída cuidadosamente, para que uma má distribuição do peso nos dois cestos não cause sofrimento ao animal.

Com este blog pretendo resgatar alguns poemas perdidos nas minhas velhas agendas (quase nunca utilizadas para marcar datas e compromissos!), ou  publicados não sei onde nem quando, uns tantos versos há muito ausentes na minha tênue memória, e mais outros, que  há anos decidi concluí-los “depois” – dentre tantos que não merecem maior atenção. Ou seja: este é mais um espaço para um exercício mnemônico compartilhado, do que propriamente um objeto literário do tipo “obras escolhidas”.

Mas, em vez de chamá-lo de  baú, termo mais associado à guarda de objetos caros, raros e finos, preferi denominá-lo caçuá, que me soa mais familiar pois que me traz diversas lembranças da minha infância na Piabanha, vale do Pardo, no sudoeste da Bahia – e, principalmente, porque combina mais com meus escritos, geralmente rústicos, pretensamente (ou desejosamente)  vertidos da poesia popular cantada nas feiras de Santana e de Conquista, na Bahia.

Diferentemente do baú, o caçuá é ambulante, roceiro, da gente simples, feito artesanalmente sabe-se lá desde quando e por quem nesta terra que ainda nem se chamava Brasil. O conteúdo do caçuá é discernível pelas frestas do trançado – cipós que formam paredes quase diáfanas, revelando objetos que contam histórias, incitam sensações, reavivam memórias...

Baú é aristocracia sobre cavalo branco. Prefiro os caminhos desbravados pelo jegue...



PLANOS

Meu traçado é a minha escolha: dia a dia determino, com meu sangue em branca folha, a linha do meu destino.

(fev 2005)

A NATUREZA DA PALAVRA



É a palavra um dom, quiçá perverso
dom com que faço minha atroz mortalha.
É também ninho, lã que me agasalha,
esteio das idéias que alicerço.

É luz dentro da noite. É o breu imerso
na perfeição das faces da medalha.
É o "não" dito como "sim". É falha.
É o cimento e a pedra deste verso.

É gelo seco, pó... se desconverso,
ou diamante. É pedra que retalha
jóias da língua. É fio. É nó. É malha.
É a palavra, enfim, dúbio universo:

Abre caminhos, luzes... É navalha
de dois gumes: também constrói muralhas.

(2002 - soneto shakespeareano)

CARDÍACO



                                            Em cada palavra pulsa um coração. 
                                            (Um Sopro de Vida – Clarice Lispector)



De cor
Coragem
Cordial

Saber agir viver morrer de coração.


(2005)

BOLACHAS!


Coisinha engraçada esse bicho achatado e espinhento
chamado bolacha-do-mar!

Dentro d'água, dentro da areia, 
a fazer cosquinha nos meus pés
e com a areia que a onda lhe cobre
até parece aquelas broas com açúcar
de confeitaria.

Com seus espinhos miúdos,
boca voltada pro fundo,
não sabe se é um ouriço que se achatou
ou uma estrela arrependida
que caiu de outro mundo
e se espatifou.

Uma quase bolacha
quase comida.
Quase nada sabe. Aliás,
só sabe
que é vida.

(2000)



CÉU MORTO



Descobri com espanto:
talvez não exista mais aquela estrela.

A luz é obra do passado
como o rio é o passado da fonte.

Em outros mundos
a Terra que se avista é passado.
O nosso céu é passado. E os astrólogos
lêem velhas cartas para falar do futuro.
E os astrônomos vêem
combinações que não existem mais.

E os poetas fitam
o trem que já passou.

             *  *  *

Quanto mais viajo
ao encontro da estrela,
mais velha ela fica.
Muda de cor.
Driblo o que há de vir
— o futuro —
saltitando sobre o passado
numa viagem multicolorida.

E pra ver a infância da velha estrela
deveria seguir sua luz primeira
(que por aqui passou)
numa nave mais ligeira.

       *  *  *

Universo:
O céu é feito de rastros.

Duniverso: o céu é feito de dunas
de estrelas se movendo.

Verso:
Uma estrela nascendo

Anverso:
outra morrendo.

(1988)

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Sobre a Lei de Boyle-Mariotte/transformação isotérmica, consulte:

http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/quimica/lei-boyle-sobre-transformacao-isotermica.htm

http://brasilescola.uol.com.br/quimica/transformacao-isotermica-ou-lei-boyle.htm
http://www.sofisica.com.br/conteudos/Termologia/EstudodosGases/tranfisot.php

CEL



Ultimamente
tenho olhado para o céu
tentando ouvir estrelas
à procura de poesia.

Mas não me bastam os sons que ouço
o cintilar que vejo
o odor de estrelas que nascem
nem o vento que toca
a pele nua dos meus frágeis ombros.

Quero o calor que se esconde
em algum canto
de todas as noites estreladas e frias
de maio.


(maio de 2000, sobre poema de Castro Alves)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

SÉRIE DE CARTÕES POÉTICOS "POEMS"
























Cartões artesanais PoeMS (12 títulos)

Poemas: Paulo Robson de Souza
Arte e confecção: Adilson Schieffer,  Elisabeth Arndt e Paulo Robson de Souza
Técnicas: silk screen, xilogravura e outras.

(1990)



CICLOS (o jogo do recomeço)




Brinque de fazer releituras desse poema clicando no círculo e girando-o na direção de sua preferência ou ao acaso, como se fosse a "roda da fortuna". Em seguida, leia o verso que aparece na parte superior. Repita quantas vezes quiser.


(2001, O Livro dos Jogos - inédito.
Programação do objeto em flash: prof. Edy Wilson - Projeto TIC Biologia)

NA PIABANHA (xote nordestino)

Xote nordestino

Roxinho levava um carote de água fresca
Gatinha dava o leite que eu bebia no curral.
Na matinha cantava a zabelê
E o meu pai pescava “guedes” de linhada lá no vau.

         Um pequeno rio
         Um menino e a Piabanha
         Um capim-açu
         Uma lembrança tamanha.

Os ingazeiros do rio Pardo eram frondosos...
O forró no chão batido, a luz fraca do fifó...
O seu Santo cobria a casa com barro
E o jipão tomava a balsa conduzida por Dió.

Devagarzinho... pôr um anel nas mãos em concha.
O meu pai fazia festa correndo atrás de teiú.
O quebra-pote, roda, versos, brincadeiras
E na roça de mandioca, lambuzados caititus.

Enquanto isso no tronco da gameleira
O roceiro descansava desejando o de comer.
O tio João caçava rolas com bodoque
E voava no mangueiro o laranja do sofrê.


(2005)

SOCANDO O PILÃO (cantiga)




Pila, pila, sá Maria
O café no fim do dia.
Na batida, sá Joana
Pois a noite principia.

E era assim que elas pilavam
Uma de cá e a outra de lá
E faziam um dueto estranho:
“Hum! Ha! Hum!”  e um  “Ah! Hum! Ah!”

O pilão tinha duas bocas
Triturando o negro café
Numa boca, dona Joana
Noutra boca, Maria José.

E Joana cantava “Hum!”
No bater da mão de pilão
E Maria cantava “Ah!”
Na batida do coração.

(2005)

QUELÉ (cantiga de roda)



Quando encontrei no porão de casa um passarinho
Foi que percebi quando o bentevi não sabe cantar.
Dentro da gaiola a ternura escapa pelas taliscas
Pois o bentevi precisa do céu para se inspirar.

Seu Quelé cantou versos de reisado na Piabanha
E me fez dormir encostado ao forno de um fogão.
O seu corpo longo, sem jeito, rude e desajeitado
Guardava a pureza nas rachaduras da grande mão.

O seu Santo deu quinhentas pisadas no barro mole
Para construir a casa de varas no duro pó.
Ele fez ali uma parede imensa com os próprios dedos
E tudo guardei num retrato só, dos tempos de Vó.


(2005)

JOGANDO VERSOS NO ENGENHO DE MAROMBA (dança de roda)


À folclorista Marlei Sigrist


[Alguém cantando ao longe, longe...]
     Como é bom fazer quadrinhas
     de cantigas populares...
     Jogar versos nesta roda
     disfarçando meus olhares.

[Menestrel falando, dando boas vindas...]
     Vamos fazer uns versinhos
     sem ter preocupação
     com a exatidão do metro...
     Falar pelo coração.

[Ela, tímida]
     Eu não sei fazer poemas,
     bordar folha igual saúva.
     Riscar verso é com as abelhas
     sobre as flores da piúva.

[Ele, introspectivo]
     Eu não sou grande poeta
     – eu lhe avisei também ―,
     grande é o sinimbu na piúva,
     tanta poesia tem.

[Ela, brincando]
     Você lembra um galo velho,
     nunca vi nada igual.
     Só que um galo bem bonito,
     cardeal-do-pantanal!

[Ele, retrucando]
     Você canta feito arara
     disso eu tenho certeza.
     Só que a mais azul das aves
     animando a natureza.

[Ela, provocando]
     Você canta feito grilo
     no calor... tão estridente!...
     Mas é um canto tão gostoso...
     Parte o coração da gente!

[Ele, todo dengoso]
     Você mais parece um bicho...
     É tão grande a semelhança...
     Uma oncinha de pelúcia
     abraçada a uma criança!

[Ela, terna e se declarando]
     Me olhando desse jeito,
     você lembra uma criança.
     Um bichinho bem bonito:
     um filhotinho de onça!

[Ele, apaixonadamente convencido]
     Encontrei um bilhetinho
     no anel de um periquito.
     “Quero ser sua namorada”
     era o que estava escrito!

[Menestrel, com cara de felicidade]
     Brincadeira que não finda,
     fazer versos de improviso!
     Verso dois rima com o quarto
     no compasso do sorriso...

[Alguém, suspirando]
     O engenho de maromba
     é um canto e uma despedida.
     Lembra um tuiuiú voando
     pelas passagens da vida.

[Alguém, já com saudade]
     Nesta quase despedida
     canto o engenho de maromba.
     Canto alegre do joão-pinto,
     canto triste de uma pomba...

[Menestrel, convidando o mundo inteiro]
     Se você for animado(a)
     continue a brincadeira.
     Faça um verso bem bonito
     sobre a fauna brasileira.
     (Mas não vá dizer besteira.)

[Alguém cantando longe daqui, feito Caetano Veloso]


(2001)

PALAVRAS (E VIDAS) CRUZADAS






1. Dias quentes. Preguiçosas cheias sem chuva
lavam a planície imensa
e levam mosquitos e larvas e coisas
de viver.
2. Campos de branco salpicados. São poesia – das econômicas.
3. Espelho móvel, cintilante
de sais e de luz
guarda o céu e
4. deita na terra a desova dos peixes. Cama de capim.
5. A palidez mais linda, 
o mais belo espelho do sol
orienta o tempo de reprodução.
6. Dezenas de árvores nuas falam por bicos moles e barulhentos,
sedentos da gosma que alimenta
e de azul.

(2001, O Livro dos Jogos - inédito)

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COMPLETE A CRUZADINHA
Depois de encontrar a palavra relacionada a cada conjunto de versos (números acima), clique sobre os quadradinhos da linha ou da coluna e digite-a. Se a palavra formada estiver correta, aparecerá um sinal verde. Se aparecer um sinal vermelho, corrija a digitação.
Programação em flash: prof. Edy Wilson (Projeto TIC Biologia/UFMS)



CRONIQUINHA



O convite me escapou desse jeito:
– Camila, vamos logo! O horizonte nos espera!
Ela riu. Ela gargalhou! Creio que poesia não cabe no dia a dia.

(jan 2005)

MARIZA E AMARÍLIO




Perco a direção
Na calmaria do vento.
Meu rumo é o agitado
Caminhar. Ando indolentemente,
Mirando pontos invisíveis.
Meu alvo são olhos
De pouca luz.
Onde estão? Não os vejo,
Nem eles me vêem.

Nesse descompromisso de enxergar
É que se dá o mais gostoso buscar.
Desprocurando a sombra vejo a luz.
Duas luzes.

Hoje encontrei Mariza e Amarílio,
Pessoas vivazes e queridas
Que não via há dez anos.
Não, não há Ary Barroso nesse verso,
Mas uma tentativa de ser factual.
Hoje encontrei almas gêmeas
Contrariando o senso da própria busca.
Gostoso saber da sua existência,
Vivenciar uma anamnese desinteressada.


(5 fev. 2005)

O FÓSSIL


Num átimo o tempo gessa
A face dolente, nua.
Mas, com o tempo, se habitua
A deixar marcas sem pressa.

JOIAS VEGETAIS



Xote dedicado à professora Tereza Cristina Stocco Pagotto


É só saber
verificar
que muitas joias nascem em tosco lugar.

Repare que
fenomenal:
joias florescem em todo o Reino Vegetal.

Eu nunca vi tanta beleza numa orquídea
que se lapida com a umidade e pouco sol
e a caliandra escondidinha no cerrado
é um sol avermelhado como brincos de farol.

Quanta beleza vi na tal da “langsdórfia” —
flores que crescem das raízes de outro ser —
As flores fêmeas são um brinco encarnado,
tão bonito feito o macho, rente ao chão no entardecer.


Na lama podre, quem diria, há outra joia
de “pelos” rubros, que cativam o animal.
É a linda drósera que lembra uma tiara
dessas ditas joias raras que florescem no coval.

As açucenas são tão brancas e cheirosas —
dentro do brejo nasce o fofo tegumento...
Tão puras jóias certamente deveriam
enfeitar, encher de glória o mais fino casamento.

Em meio à galharia torta do Cerrado
nasce uma beleza de pendão, um castiçal
de prata pura com milhares de florzinhas...
É o tal do “pepalântus” enfeitando o capinzal.

Eu nunca vi tanta beleza reunida
num só lugar a diversidade se estica:
são tantas cores, tantas formas, tantas joias —
acho que por isso chamam a região de Costa Rica.

Sucuriú é um colar, um fio de prata
com mil brilhantes a brotar dos paredões.
Um rio que guarda um montão de contas verdes
num lugar desconhecido e conhecido por Bolsão.

(2004)