sábado, 20 de maio de 2017

MANHÃ INDECISA


Sol e nuvens brincam de esconder e, sem querer, me revelam uma lembrança perdida, um poema da Cecília que ouvi tantas vezes na minha infância, na voz doce da professora carinhosa cujo rosto se apagou da minha memória... Ou Isto ou Aquilo, é o nome.
Da rede do quarto, a vista emoldurada pela janela está mais pobre: as mangas-rosas da vizinha já se foram, carcomidas pelos fungos e bactérias e pelo desprezo de quem não soube lhes dar valor. Esta visão apetitosa que me acorda desde dezembro, agora, só ano que vem, se o tempo parar de nos pregar peças, nesses tempos pré-apocalipse. Nuvens mudam de tom e perambulam, agoniadas pelo peso do líquido que começa a brotar da equação calor e pressão atmosférica.
Sábado branco, logo depois multicor; o tempo fecha de novo, e de novo se abre... Não sei se deito, ou se volto a dormir. Ou  mais eufemismo impossível , apenas dou um descansadinha nos olhos, como diria a minha vó Dila quando pega cochilando na cadeira de balanço.


PRS - 15.2.2014

CORAGEM!



― Paaaaaaaaaaaaaaiiiiiii! Venha aquiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Corri para o quarto, pensado que fosse um daqueles ratos que vez em quando aparecem no quintal, ou um carrapato do Morfeu, cão que encontrei na rua há três dias, mais infestado de parasitas que toca de onça magra.
Encontrei minha filha aos prantos, com o computador aberto. Acabou de saber que fora chamada para assumir uma vaga em serviço público federal em Ponta Porã, cidade localizada a 500 km de onde moramos, Campo Grande. Primeiro lugar em concurso muito disputado, vai exercer a profissão sem qualquer experiência, tocar sua vida de modo independente, sonho de todo jovem recém-formado.
Disse-lhe palavras reconfortantes, falei da dádiva que recebeu, que é preciso encarar com alegria novos desafios, etcœtera et al, como diria meu falecido tio João Ribeiro, pedreiro sábio, viajado e que falava bonito (na minha infância ele adorava encerrar as frases como o que eu entendia como “e tal”). Depois de dar todo tipo de conforto se espera de um pai, saí com esta:
― Coragem minha filha! Você é filha de Paulo Robson de Souza, sujeito destemido... (pausa)... que não tem medo de ratos, mosquitos e carrapatos. Ela riu. E saiu para encarar o dia de frente.


Paulo Robson de Souza
18.2.14

NA CIDADE DE PELOTAS


Em Pelotas o prumo é diferente. A sombra é diferente. Como disse minha mãe aqui certa vez, Dona Santinha, há algo no ar que não se explica, mas que nos dá a sensação de estarmos no estrangeiro.
O sol aqui se põe mais tarde, muito mais tarde. Jantar de dia é algo peculiar.
A umidade é tanta que jardins florescem sobre as telhas antigas. E pequenas bromélias crescem em fios de alta tensão.
Há jardins bonitos em frente a casas sem cercas, ruas com calçamento antigo, sobrados seculares com parapeitos de ferro inglês, e a planura do terreno é um convite às caminhadas. Desde que não se mire os doces que se cristalizam em cada esquina, pode-se até sonhar em emagrecer sem esforço.


PRS - 24.2.14

DO ARCO DO PLEISTOCENO



Desde ontem não para de chover nesta cidade de Pelotas, úmida por definição. Chuva fina, dengosa, ornada de pássaros cantantes... Enfim, daquelas que brotam do bocejo de Morfeu.

Um paradoxo, em meio a tanta nebulosidade e umidade relativa saindo pelo ladrão da coluna de ar que pressiona meu corpo, eu aqui mais seco que charque em embornal de cangaceiro.  Meus olhos parecem seixos, minha cara é uma preá moqueada, boca tomada de farinha... Aiaiaia, esta tese que teima em me desidratar até a alma, me afogando em caatinguices...  


PRS
Pelotas, 26.2.14

UM CAÇUÁ DE FOTOS



Tenho um outro caçuá de lembranças perdidas. Fotos, milhares de fotos feitas na pressa do fim do raiar do dia e da meia noite, tempo morrendo no contar do meu desespero. Coisas de ansiedade, produzir mais que a capacidade de organizar, classificar, rever... Para um biólogo, amostra e foto sem etiqueta é material perdido, a depender da finalidade. Fotos de formigas em ninho feito em ramo morto então, são um arrepio, de tão parecidas, incodificáveis.  A sorte é que, para algumas sessões, tive o cuidado de fotografar um bilhetinho ao lado, arremedo de ficha.

PRS
2.3.2014

ANIVERSÁRIO DE BETH



Hoje minha amada atingiu uma importante marca da maturidade, mas com corpinho de 30, disposição de 20, alegria de 15; vontade de viver, de ajudar e de ser feliz (ajudando): a cara de todas as idades saudáveis. A cara de Beth.

Bom demais, termos compartilhado quase metade desses consideráveis anos vividos! A promessa “na alegria e na tristeza” vivida na prática, e não na vazia superficialidade da palavra recitada por padre que nunca nos fez prometer, pois sequer nos viu diante dos seus rituais (pois não foi preciso). Uma vida a dois sem perdermos nossa individualidade. Na alegria e na tristeza. Na dureza da rocha e na poesia da flor. Que começa com a passagem do cometa Halley...

PRS
6.3.2014

ATEMPORAL, MEU MAL




― Lucimara aqui é o Paulo Robson como vai você tem um tempinho para me atender estou no Sul não estou conseguindo sacar dinheiro o cartão está bloqueado ― falei assim de supetão, vício do tempo da ficha telefônica, em que um ponto de interrogação determinava ou não a interrupção da conversa (não pela interrogação em si, mas pela resposta que se sucederia à pergunta).

― Professor, o senhor terá de esperar o banco abrir, na segunda... ― falou-me ao celular uma voz doce e calma de gerente atenciosa, jeito de quem acabara de acordar e não acreditava no que estava ouvindo. Pego de surpresa pela impropriedade da ligação, devolvi a gentileza com uma saraivada de mil perdões ai que vergonha meu deus sou perdido no tempo jura que hoje não é sexta-feira desculpe desculpe desculpe ai que vergonha bom final de semana pra você e sua família. E desliguei rapidinho (a ficha caiu).


Paulo Robson de Souza
01.3.14

terça-feira, 16 de maio de 2017

PRÉ-TEXTOS VIII (BOCA SECA DE ASCO)



Acordei com a boca seca de asco, olhos inchados de pesadelos e uma ausência de temeridades em todos os poros. Hoje não estou nem para mim.

*  *  *

        Há um bentevi
        no meu quintal
        que todo dia me chama.
        Parece que clama
        por uma tigela d’água.
        Qual de nós terá maior sede?

*  *  *

        Afinal não entendo
        Qual a do passarinho
        Que alimento,
        Dou todo dia um pote de água fresquinha
        Mas que não me nutre
        Com um ninho.

*  *  *

Borboletas transgridem o vento.

*  *  *

Borboletas tingem as flores de escamas coloridas.

*  *  *

Cerquei-me de mentiras, mergulhei nas intrigas em revista neste meu modorrento sofá. Notícias escorrem por entre meus dedos, tão pesadas estão. Sim, hoje é domingo. Quisera ter um pé-de-cachimbo.

Paulo Robson de Souza
27/02/2005

Da série Poesia Todo Dia!

PRÉ-TEXTOS VII (SOBRE A INTUIÇÃO)




Tinha cochilado no finzinho de tarde e minha filha me achou “com cara de bravo”. Algo muito estranho, ter pesadelos durante um cochilo. Agora só me resta dormir.

*  *  *

Há algum tempo li um desses artigos acadêmicos. Argumentava sobre a tendência que os pesquisadores têm, à medida envelhecem, de substituir parte do pensamento científico por atos mais relacionados à intuição.  Penso ― penso? ― que neurônios envelhecidos tendem a desacreditar o sentido racional que certas coisas nos oferecem, passam a duvidar das certezas e a se cansar das interrogações. Em outras palavras, a senilidade torna dois sacos cheios: o próprio, e algum tipo de “saco mental”, aquela região cerebral que costuma mandar o mundo às favas toda vez que um idiota, um pretenso inteligente ou o pior tipo de gente, o arrogante, abre a boca inoportunamente.
Minha intuição me diz que hoje não devo sair de casa.


Paulo Robson de Souza
28/02/2005

Da série Poesia Todo Dia!

NA BUCHA



Necas de pitibiribas é uma daquelas expressões que nunca soube o pleno significado, mas que sempre as empreguei com reverência e zelo.

*  *  *

Ser aeroplano é o sonho de todo teco-teco.

*  *  *

Guimarães disse que viver é correr perigo. E não viver? É o tédio. A dor silenciosa da amofinação.

*  *  *

O arrepio é o soluço do corpo.

*  *  *

Nunca é nada, ausência que jamais considerarei.

*  *  *

Hoje colhi sorrisos dentro de minha boca.

*  *  *

Machado de Assis, um bruxo? Mais que isso: um pervertedor de orações fáceis. Um luxo. Um esdrúxulo, in plenis verbis. Plenitude linguística.

*  *  *

Cansei das desafinações das operetas cotidianas. Busco a ópera diuturna nas entrelinhas da baixa comédia.

*  *  *

Quer conhecer o amigo? Contrarie-o e o espere sentado, com cara de quem amanheceu com vertigem ― a do tipo objetiva, que é para aumentar a dramaticidade.


10/3/05
Da série Poesia Todo Dia! (sem cortes)








segunda-feira, 15 de maio de 2017

IMPRESSÕES




Ter a consciência do próprio corpo, de modo tão racional, não é bom pra mente. Não sabê-lo causa menos dor.

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Definitivamente, um abraço é melhor que um amasso. Principalmente um abraço de seis meses de atraso ante o amasso de ontem.

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Não, não é poesia: ouço o meu coração cada vez mais. Coisa de biólogo metido a besta que desenvolveu o sentido de se auto-auscultar. Ou de poeta cansado.

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Pimenta, mesmo no fiofó dos outros, arde meus olhos. Desgraça alheia não tem graça nem rima bem.

*   *   *

Quando minha amiga nipônica me abraçou hoje, perdi meu oriente.

*   *   *

Ninguém me contou, nem eu mesmo a mim ― pode isso, Fernando? ―, mas estou desconfiado que a poesia é meu projeto de fuga.

*   *   *

Devo ter um nervo ligando o queixo diretamente ao estômago, pois a cada soco do dia o reflexo é imediato: da mucosa jorra ácido clorídrico de balde. E, também numa infeliz associação direta, debalde como folhas de boldo.

*   *   *

De tão estressado, até toque de telefone me embrulha o estômago e para a respiração. Tou pensando em romper ligações. Principalmente com o nervo vago.




6 de junho de 2005
(da série Poesia Todo Dia - sem cortes)