sábado, 16 de fevereiro de 2013

O PRIMEIRO DIA DE 2005




Quatro trinta-réis se atiraram
nas ondas da barra
da laguna.

Quatro trinta-réis
encerraram o dia.


        *    *    *

Onde o mar beija a laguna
trinta-réis lhes furam a tez
até reter, sob a espuma
o dia que um dia se fez.


(janeiro de 2005)


Aquarela de Lígia Zeolla Vieira

O CANARINHO


Todo dia, no finzinho da tarde, ele cantava encantadoramente em um arbusto à porta de casa. Passei a observá-lo com mais acuidade, ao longe, e percebi: assim o fazia após o último raio de sol. O canarinho-da-terra parecia dobrar o canto — tive vontade de gravá-lo, tão rico era o trinado. Mas, para quê? — pensei. Para mostrar a um especialista? A graça estava em memorizá-lo, em reconhecê-lo como um canto diferente, diverso daquele que se ouvia à beira do Piabanha, na minha infância, vindo de um bando de canários-da-terra da fronte bem dourada. Mas esse canarinho que vinha à porta dessa casa de veraneio no Cassino tinha identidade: reconhecia-o pelo canto peculiar, pela cor, pelo hábito de pousar no mesmo galho, sempre à mesma hora.

                                                                                                                                                                           
                                             No mesmo horário
                                             um canário
                                             anuncia o fim do dia.

                                             Cantando, um canário,
                                             anuncia o fim do dia
                                             e um novo cenário.


(26.01.2005)



Aquarela de Lígia Zeola Vieira

ACORDEI SEM VER A LUA




Buscava
certas palavras
que fossem
as mais bonitas
e raras
e preciosas.

Buscava
canções perfeitas
que fossem
inesquecíveis
e raras
e preciosas.

Sonhava
o torpor das estrelas
e a luz que irradia
de uns vermes do mar.
Buscava
alcançar o intangível.


(janeiro de 2005)

MADALENA




Madalena passou fome de palavras. Comeu um agreste para não comer.
Teve sede de paisagens. Bebeu açudes. Mas não resistiu ao mal da indiferença e à abastança de água e comida sem amor.


 (janeiro de 2005)

SYLVIA





No avental frio
insosso
bate um coração.

(janeiro de 2005)



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Fonte dos caracteres chineses tradicionais:
http://en.wikipedia.org/wiki/Qigong



I QI GONG





A bola de fogo passa
de mão em mão,
leve, morna, rola
de mão em mão
flutua
vive...

Uma bola de fogo
maior que meus pensamentos
e tão leve...
uma aspiração descreve:
— Não queimar, não correr
     derramar-se sem morrer...

(janeiro de 2005)



_____________

Fonte dos caracteres chineses tradicionais:
http://en.wikipedia.org/wiki/Qigong

BALEIA



Quando se passou
fome de dar dó
lhes alimentou
caçando mocó.

Cinco vidas brutas,
mudas, fabianas,
ou treze labutas
(des)gracilianas?

Quantas vidas pecas
dão a emburana
no seco sertão?

Quantas vidas secas
tornam mais humana
a vida de cão?

(24.jan.2005)