quinta-feira, 10 de outubro de 2013

SETE CORDAS, SETE ARTES



Hoje, 10 de outubro de 2013, perdemos Orlando Brito, músico profissional e compositor respeitadíssimo. No Regional de Choro Agemaduomi e na Confraria do Choro, era quem tocava o violão de sete cordas, embora dominasse também o canto, a viola caipira, o cavaquinho e outros instrumentos. Junto ao músico Adriano Praça, tive a felicidade de contar com sua parceria em alguns trabalhos, como “Pretenso Chorão” (CD “Agemaduomi - 10 Anos de Choro”) e “O Choro do Tubarão-baleia”, do CD encartado ao livro “Animais Mais Mais”, cuja partitura foi publicada neste Caçuá (clique aqui para download).

Em 2006 Orlando me passou o áudio de uma música dele, ainda sem nome, para que eu botasse letra. O resultado foi este, “Sete Cordas, Sete Artes”, finalizada em agosto de 2007. Ainda inéditas, letra e música ficaram descansando todos esses anos até hoje, pois não é justo, em memória do Orlando, que só eu tenha acesso a este trabalho. Aliás, “Sete Cordas” é quase inédita: em 2007 a apresentamos na Confraria do Choro (Campo Grande), sem ensaio sem nada, uma brincadeira que fizemos naquela noite de domingo chamando nossa apresentação despretensiosa de “lançamento mundial” desta composição.

Além de ser um grande músico, com sólida carreira ancorada em Cuiabá (MT) e Campo Grande (MS), Orlando se notabilizou pelo seu humor constante, sempre com uma piada pronta para qualquer situação. Orlando brincava até com sua incapacidade de enxergar. Pois bem! Como muitos sabem, sou muito distraído. Assim que a letra ficou pronta, eu a enviei ao Orlando, via e-mail, e também entreguei uma cópia impressa em mãos, dizendo que havia escrito a letra como se fora ele próprio quem a escreveu, dignificando sua deficiência visual, sua arte e profissão. Dias depois, na Confraria, cheguei pra ele e disse: “E aê, parceiro, já decorou a letra? Vamos cantá-la hoje mesmo, de qualquer jeito?”. Orlando, de pronto, respondeu: “Tá brincando, rapaz!! Como é que eu vou ler [texto word]? Esqueceu que eu sou cego?”. Era uma gozação, pegadinha que caí fácil, fácil, pois que meu amigo possuía em seu computador um programa de leitura de texto! Este era o Orlando!



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SETE CORDAS, SETE ARTES


Música: Orlando Brito
Letra: Paulo Robson de Souza



Há mãos que marcam o papel
– histórias que sei de cor –
Mãos que dominam a cor
Mãos que modelam o pó...

Eu que não sei escrever, contar
Nem desenhar, esculpir
Faço a arte das mãos
Acariciando o violão.

Há quem faz rir ou chorar
Dançar as mãos no chapéu...
Mãos que eternizam a luz
No celulóide papel.

Eu que não danço e nem sei filmar
Representar, fazer rir...
Quero cantar, quero ouvir,
Dedilhar um jeito de sentir.

Quando em mim assenta a inspiração
Vem muito trabalho, transpiração,
Mãos de sal emanam arte e por toda parte surge o essencial.

Quando a alegria some pra cá
Quando a harmonia falta por lá
O trabalhador descansa revivendo o artista que ri por trabalhar.

Eu que não sei escrever, contar
Nem desenhar, esculpir
Faço a arte das mãos
Acariciando o violão.

Quero rever os sete
Mares e céus e cores
As sete artes sentir
Sete cordas tocar.

Distribuir sementes
Tateando outras mãos
E, no fim, na senescência,
Aos sete palmos no chão...

Redescobrir a vida
Das mãos brotar sorrisos
A música planta
Poesia no ar.

Eu que não sei escrever, contar
Nem desenhar, esculpir
Faço a arte das mãos
Acariciando o violão.





sábado, 31 de agosto de 2013

OS URUBUS SÃO LINDOS!





Tem gente que só enxerga
o que se bota na mesa
só tem olhos para o belo
se esquecendo da dureza
que é limpar toda sujeira
feita pela boniteza.
Não há feio nem bonito
nesta sábia natureza.

O que seria do mundo

se não fossem os urubus
que, para os ignorantes,
são filhos do belzebu?
Saneando, comem o feio
e o belo que deu chabu.
Se beleza não põe mesa,
sua beleza é hors-concours.


“Peraí”, você está rindo?
Já lhe explico. Calma lá!
Toda criação é bela.
Você há de concordar:
cada beleza depende
de cada jeito de olhar.
Dependendo do momento,  
ave mais bela não há!


Veja só o urubu-peba:
tem a cara matizada
predominando o amarelo,
de laranja e azul ornada.
Vendo de perto parece
por grande artista pintada.
Chamam cabeça-de-sola
essa espécie maquiada.

Urubu-peba adulto (Cathartes burrovianus)


Mais esguio e não tão preto
quanto o mais comum da lista
de urubus da minha infância
em Vitória da Conquista,
Cathartes burrovianus
fez de mim sua conquista
(é assim que ele é chamado
pelos nossos cientistas).


lembra o peba na planada
mas sua careca é vermelha
e sua nuca é azulada.
Pelo nome o bicho gosta
de uma carne mal passada.
Mas confesso que não vi
até hoje sua caçada.


Mas sua cor não é tão negra
quanto o azulado chupim.
Tem um voo tão elegante
quanto o pequeno tuim
o dito Cathartes aura
(a ciência o chama assim).
Como é bom vê-lo planar
no disco do Tom Jobim!

No Pará ele é jereba

e no Rio ele é campeiro.
Assim como o urubu-peba,
acha o morto pelo cheiro.
Acredite se quiser:
o distinto cavalheiro
gosta de comer coquinhos
saídos do dendezeiro.


Cathartes melambrotos
Tem a cabeça amarela
de uma palidez inata.
Tem nome nobre – fidalgo
mas não vive de bravatas:
na Amazônia os bichos mortos,
usando o olfato ele cata.

Quem já viu o urubu-rei

no alto céu buscando sal,
nunca mais esquecerá
dessa cena tão real
como eu vi na Bodoquena
em uma tarde sem final.
Sarcoramphus papa! Eis
o seu nome oficial.


Depois do condor-dos-andes
(que aqui não se reproduz)
é o que busca o céu mais alto
e o maior dos urubus.
Num “banquete” há hierarquia
para não virar angu:
come a carniça primeiro,
retalhando o boi zebu.

O refinado ministro
também é o mais enfeitado:
quando jovem é cinza-chumbo
quando adulto é esbranquiçado.
Tem bolotas na cabeça
e os olhos são azulados.
Talvez por se achar um rei
tem um papo exagerado.


é justamente o contrário:
parece que faltou tinta
na despensa do berçário   
pois o adulto é todo preto
mas é branco no fraldário.
Em termos de quantidade
ele é o mais ordinário.

Tão numeroso, parece
batalhão de infantaria
a enfrentar, nos lixões,
carniças e porcarias.
E Coragyps atratus
– ave de grande valia –
é o seu nome de guerra
nos livros de biologia.


Ah! Nos céus da caatinga
dá uma confusão danada:
há um gavião escuro
com barras acinzentadas                  
na sua cauda elegante
como se sinalizada.
É um pássaro? Um avião?
Um urubu na caçada?


Ele é um grande imitador
do planar de um urubu...
Ele é o "super" caçador,
pois assim não espanta a presa
– mimetismo de valor.
Gavião sem-vergoinha,
espertinho predador!

É um gavião bonito,
tem feições elaboradas...
Mas mesmo desengonçados,
com aquela cara lavada,
os urubus são mais belos
pelas vistas desarmadas.
Existe um charme, sei lá,
no mundo da urubuzada!


Ah, se o Tom Jobim pudesse
ver o que vi inda agora:
briga de um burrovianus
com um carcará que chora
por conta de um peixe morto
pertinho do Campo Dora.
No ar deu uns petelecos,
mandou o carancho pra fora.

Dizem que todo urubu
é parente das cegonhas.
Eu bem que desconfiava
pois o bicho é sem-vergonha
dado a levar cururus
na viola com os que sonham
com a “zoofesta” do céu
contada à beira da fronha.  


Urubus têm atributos
que lhes facilitam a vida:
carecas até o pescoço,
mesmo se buscam a comida
nos ventres apodrecidos
das criações falecidas
não se sujam pois sua cara,
naturalmente, é lambida. 


Chega a ser até engraçado
quando vão se alimentar
enfiando sua cabeça
dentro daquele lugar.
Eles começam por onde
nosso pão vai se acabar.
Eis o “papo de urubu”
do ditado popular! 


E na hora do sol forte
antes da vagem rachar
abrem as asas contra o vento
sobre um toco do lugar
como faz toda cegonha
pra poder se refrescar.
Cagam nas próprias canelas
pro calor se dissipar.

Os urubus se comportam
de modos muito diversos:
brigam, xingam ao seu modo,
pela brisa são dispersos.
Fazem piruetas de amor,
no profundo azul imersos...
São tantos comportamentos,
que não cabem nestes versos.


Muito poderia dizer
do “pessoal da limpeza”.
Você também tem um monte
de histórias, sim, com certeza.
É por isso que repito
que beleza não põe mesa.
        Não há feio nem bonito
        nesta sábia natureza.


Do livro Poesia Animal (com Sidnei Olívio), Editora UFMS/ Sterna, 2003.

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Nota

Essa quase moda de viola teve como base o livro Ornitologia Brasileira, de Helmut Sick (Nova Fronteira, 1997) e observações de campo. A ornitóloga Adriani Hass gentilmente fez a revisão técnica do poema. 

Saiba mais


urubu-peba (urubu-de-cabeça-amarela): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-amarela
urubu-caçador (urubu-de-cabeça-vermelha): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-vermelha
urubu-da-mata: http://wikiaves.com.br/urubu-da-mata
urubu-rei: http://wikiaves.com.br/urubu-rei
urubu-comum (urubu-de-cabeça-preta): http://wikiaves.com.br/urubu-de-cabeca-preta
Buteo albonotatus (gavião-de-rabo-barrado): http://wikiaves.com.br/gaviao-de-rabo-barrado

quinta-feira, 27 de junho de 2013

(CONVITE - entrevista para o ABZ DO ZIRALDO)

http://www.ebc.com.br/infantil/galeria/videos/2013/08/paulo-robson-de-souza-um-fotografo-de-olho-na-natureza

Entrevista que o autor deste blog deu ao Ziraldo, programa ABZ do Ziraldo, TV Brasil.  Clique na foto e assista!

quinta-feira, 13 de junho de 2013

(Entrevista à jornalista Carmen Cestari / TV Brasil Pantanal)


No programa Primeira Pessoa, a jornalista Carmen Cestari entrevista o autor deste blog.
O programa foi ao ar em abril de 2013, pela TV Brasil Pantanal.
Para assisti-lo, clique na imagem.




sábado, 1 de junho de 2013

A PINTORA DE CÉUS DE CACAU


 
Julho de 2005. Entrei naquela igreja somente para ver o painel que Nice pintara em 1974. Lembro-me quando o vi pela primeira vez, ainda garoto, olhos inundados pelo amarelo-limão e tramas multicoloridas que vestiam a ampla parede do fundo do altar.

Um belo altar: não tinha imagens de santos, nem velas, qualquer adereço católico; no máximo uma cruz modesta me vem à lembrança. A obra de Nice lhe bastava, ornando-o de alegria de tecido prometido para vestido de festa. Próprio de quem busca os céus.

― Não, o painel não foi removido ― disse-me a velhinha beata com cara de “por que todo este espanto?” ―; isto que o senhor está vendo é parede de compensado, concluiu sem me explicar o porquê do tapume.

Sabia que muitos dos católicos de Linhares, desde a inauguração da igreja, implicavam com sua arquitetura modernista, sua quase ausência de luxos, rococós, adornos sacros. Por causa das duas cunhas idênticas apontando para o céu, construídas nos extremos da nave da igreja ― a primeira, funcionando como torre frontal e a outra, cobrindo o altar ―, apelidaram-na de “cama de Cristo”. Igreja tem que ter cara de igreja, diziam. Como o pároco da Igrejinha da Pampulha diria a Juscelino e Niemayer na década de 50.

Apontando-me os imensos anjos que Nice pintara na parede interior, sobre a porta de entrada ― uma Carmem Miranda e outras mulheres (anjos com sexo, sim!) tocando instrumentos populares entre beija-flores, folhagem densa e cacaueiros tomados de frutos ―, disparando o sotaque de imigrante italiana a senhora me contou que este painel aí só não foi desmanchado porque o filho da falecida pintora não deixou. Precisou entrar na justiça, o rapaz. A Nice, coitada, morreu de paixão. Que há de se fazer, meu senhor?

Nice Nascimento. Uma pessoa doce que tive a honra de conhecer pessoalmente assim que me mudei para Linhares. Anjo de traços afro-indígenas, pintora primitivista que obteve reconhecimento em vida. Mulher ungida, Nice: nascida do Espírito Santo amém.

Morreu de desgosto, sentenciou a beata. Prefiro acreditar que se juntou às mulheres-anjo que moram em sua obra e cantam para o Jesus Cristinho dormir, pois desse éden tropical é mais fácil zelar pelas almas e intenções da gente pequena.
 

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Sobre Nice:

http://paixaocapixaba.com.br/?p=3692

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/Enc_Artistas/artistas_imp.cfm?cd_verbete=2886&imp=N&cd_idioma=28555

Entre Santos e frutos de ouro: Nice Nascimento Avanza, por Renata Bonfim http://www.letraefel.com/2008/08/nice-nascimento-avanza.html

segunda-feira, 15 de abril de 2013

PARA BETO GUEDES




Como um rio

Doce

mineiro

a tua música se espalha

em nosso interior

erodindo mágoas

abrindo suaves caminhos

adubando...

revestindo de primaveras

todo o barro que nos modela.


(1988)

CLARA




Clara Claridade


para o povo, os poetas...

Arara vermelha

voou tão cedo...

Será que o brilho intenso esgotou sua bateria?

Não. Sua força vem do morro

energizando a Cidade

suas artérias e veias

— inesgotável Portela.


Clara nuvem de algodão

agora viaja no vento

rumo às estrelas que foram

encher de música o céu.


(1988)


GERALDO AZEVEDO




        Ê trem retado esse moço!

        Faz belos versos sem esforço

        E, quando faz cantoria,

        parece fazer poesia.


(1988)

BETHÂNIA



Menina da Mãe Menininha

Menina dos olhos

Dos colares protetores

Das explosões mais humanas

Foi Narciso quem me disse

As sereias

Te emprestam o canto

Que nos leva enfeitiçados

A infinitos mares

De olhares.



(1988)

terça-feira, 26 de março de 2013

PÁSCOA




O velho procurou o menino
na dureza opaca do cristalino
dos seus olhos secos
de tanta aspereza.

E vendo que  assim não o encontrava, chorou.

E assim, chorando
molhou o torrão que habitava os seus olhos
e viu nascer em si
um menino.



E foi do barro que criou o homem
que o velho criou o menino

e o alimentou
com a esperança de quem busca laçar manhãs
todas as manhãs
 e colher pores-do-sol todas as tardes
ainda que chuvosas.

E lhe deu de beber
com a água que se esconde
nos subterrâneos de todos os desertos.

E o velho moço quando viu, chorou outro choro.


(abril de 1995)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O PRIMEIRO DIA DE 2005




Quatro trinta-réis se atiraram
nas ondas da barra
da laguna.

Quatro trinta-réis
encerraram o dia.


        *    *    *

Onde o mar beija a laguna
trinta-réis lhes furam a tez
até reter, sob a espuma
o dia que um dia se fez.


(janeiro de 2005)


Aquarela de Lígia Zeolla Vieira

O CANARINHO


Todo dia, no finzinho da tarde, ele cantava encantadoramente em um arbusto à porta de casa. Passei a observá-lo com mais acuidade, ao longe, e percebi: assim o fazia após o último raio de sol. O canarinho-da-terra parecia dobrar o canto — tive vontade de gravá-lo, tão rico era o trinado. Mas, para quê? — pensei. Para mostrar a um especialista? A graça estava em memorizá-lo, em reconhecê-lo como um canto diferente, diverso daquele que se ouvia à beira do Piabanha, na minha infância, vindo de um bando de canários-da-terra da fronte bem dourada. Mas esse canarinho que vinha à porta dessa casa de veraneio no Cassino tinha identidade: reconhecia-o pelo canto peculiar, pela cor, pelo hábito de pousar no mesmo galho, sempre à mesma hora.

                                                                                                                                                                           
                                             No mesmo horário
                                             um canário
                                             anuncia o fim do dia.

                                             Cantando, um canário,
                                             anuncia o fim do dia
                                             e um novo cenário.


(26.01.2005)



Aquarela de Lígia Zeola Vieira

ACORDEI SEM VER A LUA




Buscava
certas palavras
que fossem
as mais bonitas
e raras
e preciosas.

Buscava
canções perfeitas
que fossem
inesquecíveis
e raras
e preciosas.

Sonhava
o torpor das estrelas
e a luz que irradia
de uns vermes do mar.
Buscava
alcançar o intangível.


(janeiro de 2005)

MADALENA




Madalena passou fome de palavras. Comeu um agreste para não comer.
Teve sede de paisagens. Bebeu açudes. Mas não resistiu ao mal da indiferença e à abastança de água e comida sem amor.


 (janeiro de 2005)

SYLVIA





No avental frio
insosso
bate um coração.

(janeiro de 2005)



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Fonte dos caracteres chineses tradicionais:
http://en.wikipedia.org/wiki/Qigong