sábado, 1 de junho de 2013

A PINTORA DE CÉUS DE CACAU


 
Julho de 2005. Entrei naquela igreja somente para ver o painel que Nice pintara em 1974. Lembro-me quando o vi pela primeira vez, ainda garoto, olhos inundados pelo amarelo-limão e tramas multicoloridas que vestiam a ampla parede do fundo do altar.

Um belo altar: não tinha imagens de santos, nem velas, qualquer adereço católico; no máximo uma cruz modesta me vem à lembrança. A obra de Nice lhe bastava, ornando-o de alegria de tecido prometido para vestido de festa. Próprio de quem busca os céus.

― Não, o painel não foi removido ― disse-me a velhinha beata com cara de “por que todo este espanto?” ―; isto que o senhor está vendo é parede de compensado, concluiu sem me explicar o porquê do tapume.

Sabia que muitos dos católicos de Linhares, desde a inauguração da igreja, implicavam com sua arquitetura modernista, sua quase ausência de luxos, rococós, adornos sacros. Por causa das duas cunhas idênticas apontando para o céu, construídas nos extremos da nave da igreja ― a primeira, funcionando como torre frontal e a outra, cobrindo o altar ―, apelidaram-na de “cama de Cristo”. Igreja tem que ter cara de igreja, diziam. Como o pároco da Igrejinha da Pampulha diria a Juscelino e Niemayer na década de 50.

Apontando-me os imensos anjos que Nice pintara na parede interior, sobre a porta de entrada ― uma Carmem Miranda e outras mulheres (anjos com sexo, sim!) tocando instrumentos populares entre beija-flores, folhagem densa e cacaueiros tomados de frutos ―, disparando o sotaque de imigrante italiana a senhora me contou que este painel aí só não foi desmanchado porque o filho da falecida pintora não deixou. Precisou entrar na justiça, o rapaz. A Nice, coitada, morreu de paixão. Que há de se fazer, meu senhor?

Nice Nascimento. Uma pessoa doce que tive a honra de conhecer pessoalmente assim que me mudei para Linhares. Anjo de traços afro-indígenas, pintora primitivista que obteve reconhecimento em vida. Mulher ungida, Nice: nascida do Espírito Santo amém.

Morreu de desgosto, sentenciou a beata. Prefiro acreditar que se juntou às mulheres-anjo que moram em sua obra e cantam para o Jesus Cristinho dormir, pois desse éden tropical é mais fácil zelar pelas almas e intenções da gente pequena.
 

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Sobre Nice:

http://paixaocapixaba.com.br/?p=3692

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/Enc_Artistas/artistas_imp.cfm?cd_verbete=2886&imp=N&cd_idioma=28555

Entre Santos e frutos de ouro: Nice Nascimento Avanza, por Renata Bonfim http://www.letraefel.com/2008/08/nice-nascimento-avanza.html

4 comentários:

  1. OLá Robson, apenas hoje seu comentário chegou até mim.... Não sei porque o google está remetendo od comentários do meu blog para outra pessoa, estou vendo como acertar isso...
    Olha, linda homenagem prestada a Nice! Parabéns também pelo blog... abraços desta colega poeta
    Renata

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    1. Olá Renata, que bom que você gostou do texto. Tirando as falas, pois tantos anos depois não teria como reproduzi-las exatamente como foram proferidas, o resto aconteceu mesmo.
      Sobre o comentário, acho que o problema está resolvido, pois eu o postei hoje mesmo (2.6).
      Grato pela atenção. Poste aqui link para os seus poemas.
      Abraço.

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  2. Bonita a sua crônica, Paulo. Eu não queria morrer de desgosto, mas, gostaria de ser doce e me juntar aos anjos como ela , a Nice. Beijos!!!

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    1. Oi Shirley, minha prezada poeta e amiga, grato pela consideração ao texto. Bem, como disse em outro comentário, o fato relatado na crônica aconteceu mesmo. Entretanto, não sei se, verdadeiramente, nossa pintora levou esse desgosto na sua partida, se essa tristeza profunda aconteceu da forma que a interlocutora me disse... Prefiro acreditar que não. Como é meramente uma crônica, e não a biografia da ilustre artista, fica como está!
      Grande abraço.

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