Julho de 2005. Entrei naquela
igreja somente para ver o painel que Nice pintara em 1974. Lembro-me quando o
vi pela primeira vez, ainda garoto, olhos inundados pelo amarelo-limão e tramas
multicoloridas que vestiam a ampla parede do fundo do altar.
Um belo altar: não tinha imagens
de santos, nem velas, qualquer adereço
católico; no máximo uma cruz modesta me vem à lembrança. A obra de Nice lhe bastava, ornando-o de
alegria de tecido prometido para vestido de festa. Próprio de quem busca os
céus.
― Não, o painel não foi removido ―
disse-me a velhinha beata com cara de “por que todo este espanto?” ―; isto que
o senhor está vendo é parede de compensado, concluiu sem me explicar o porquê
do tapume.
Sabia que muitos dos católicos de
Linhares, desde a inauguração da igreja, implicavam com sua arquitetura modernista,
sua quase ausência de luxos, rococós, adornos sacros. Por causa das duas cunhas
idênticas apontando para o céu, construídas nos extremos da nave da igreja ― a
primeira, funcionando como torre frontal e a outra, cobrindo o altar ―,
apelidaram-na de “cama de Cristo”. Igreja tem que ter cara de igreja, diziam.
Como o pároco da Igrejinha da Pampulha diria a Juscelino e Niemayer na década
de 50.
Apontando-me os imensos anjos que
Nice pintara na parede interior,
sobre a porta de entrada ― uma Carmem Miranda e outras mulheres (anjos com
sexo, sim!) tocando instrumentos populares entre beija-flores, folhagem
densa e cacaueiros tomados de frutos ―, disparando o sotaque de imigrante
italiana a senhora me contou que este painel aí só não foi desmanchado porque o
filho da falecida pintora não deixou. Precisou entrar na justiça, o rapaz. A
Nice, coitada, morreu de paixão. Que há de se fazer, meu senhor?
Nice Nascimento. Uma pessoa doce que tive a honra de conhecer pessoalmente assim que me mudei para
Linhares. Anjo de traços afro-indígenas, pintora primitivista que obteve
reconhecimento em vida. Mulher ungida, Nice: nascida do Espírito Santo amém.
Morreu de desgosto, sentenciou a beata. Prefiro acreditar
que se juntou às mulheres-anjo que moram em sua obra e cantam para o Jesus Cristinho
dormir, pois desse éden tropical é mais fácil zelar pelas almas e intenções da
gente pequena.
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Sobre Nice:
http://paixaocapixaba.com.br/?p=3692
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/Enc_Artistas/artistas_imp.cfm?cd_verbete=2886&imp=N&cd_idioma=28555
Entre Santos e frutos de ouro: Nice Nascimento Avanza, por Renata Bonfim http://www.letraefel.com/2008/08/nice-nascimento-avanza.html
OLá Robson, apenas hoje seu comentário chegou até mim.... Não sei porque o google está remetendo od comentários do meu blog para outra pessoa, estou vendo como acertar isso...
ResponderExcluirOlha, linda homenagem prestada a Nice! Parabéns também pelo blog... abraços desta colega poeta
Renata
Olá Renata, que bom que você gostou do texto. Tirando as falas, pois tantos anos depois não teria como reproduzi-las exatamente como foram proferidas, o resto aconteceu mesmo.
ExcluirSobre o comentário, acho que o problema está resolvido, pois eu o postei hoje mesmo (2.6).
Grato pela atenção. Poste aqui link para os seus poemas.
Abraço.
Bonita a sua crônica, Paulo. Eu não queria morrer de desgosto, mas, gostaria de ser doce e me juntar aos anjos como ela , a Nice. Beijos!!!
ResponderExcluirOi Shirley, minha prezada poeta e amiga, grato pela consideração ao texto. Bem, como disse em outro comentário, o fato relatado na crônica aconteceu mesmo. Entretanto, não sei se, verdadeiramente, nossa pintora levou esse desgosto na sua partida, se essa tristeza profunda aconteceu da forma que a interlocutora me disse... Prefiro acreditar que não. Como é meramente uma crônica, e não a biografia da ilustre artista, fica como está!
ExcluirGrande abraço.