domingo, 15 de abril de 2012

REPARANDO MELHOR, A NATUREZA, DE ALGUM MODO, RESPIRA POESIA



Vendo o esterco, ninguém lhe dá valor
Se não tem visão clara do amanhã.
Bactérias — gigantes sendo anãs —
Reelaboram a matéria no calor.
Adubada, a raiz põe-se ao labor,
Faz crescer a roseira com anemia.
É no esterco que tudo principia
Dando à flor a cheirosa sutileza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Vendo o esterco, tem gente que vomita
Porque nele não vê utilidade.
É o esterco promessa de bondade
Junto à microbiota que o habita.
Ao se ver transbordando uma marmita
Dá na gente uma imensa alegria:
Os micróbios transformam a “porcaria”
Em fartura, enfeitando a nossa mesa.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Quem já viu caracóis escorregando
Pelos troncos arfantes, sonolentos
E esperou que marcassem o chão — visguentos —,
Nem notou todo o tempo lhe marcando.
Esperar sem saber que está esperando,
Respirando o forjar da calmaria...
Imagino que isso bastaria
Pra inspirar, dos moluscos, a nobreza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

O poeta que tem no nome o barro,
Pescador de palavras, caracóis
Respirando as ausências dos paióis
Sobre o pó dos quintais nos quais me esbarro.
Na firmeza do verbo é que me agarro.
Não com a força que o mestre agarraria
Pois retira o calor da lama fria...
Pois que extrai os pulsares da aspereza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Nos jardins submersos de Bonito
Algas, lama, dourados, grandes folhas,
Caramujos e musgos... cospem bolhas. 
Naturais, são aquários infinitos.
Mundos d’água gasosa — e inauditos —
Nos inspiram poemas, fantasias.
Respirar dentro d’água é alegria
Para os que vivem imersos na pureza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Quando os gases se entregam, inodoros,
Ao propósito máximo de um ser,
Oferecem a chama pra poder
Produzir descendentes vencedores.
Se o invisível transmuta-se nas cores
Quando a luz faz brotar policromias
Vegetais sustentando a zoologia,
Toda a vida animal se vê acesa.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Turbilhões de suspiros leva o vento
Pela noite, varrendo o continente.
São lamentos que exala o solo quente
No processo de desaquecimento.
Para o mar de incerteza — o pensamento —
Dissolver-se no sal da maresia
Pra se cristalizar na cantoria,
No galope da aérea correnteza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Num galope os alísios crespam a areia
Retornando às entranhas da restinga
Revirando a folhagem da caatinga
Deixam livres os gases sob as teias.
Neste ir e voltar fica mais cheia
A barriga do ar que faz folia
E, que em vez de engordar mais, quem diria,
Quando quente é a essência da leveza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Frente fria é, no chão, intempestiva,
É matéria gasosa viajante.
Quente brisa na altura estonteante
É o bafejo da lida coletiva.
Trocam os gases de toda a massa viva.
Ao fazerem, no céu, estripulias,
Reciclando a matéria e a energia,
Essas duas confirmam uma certeza:
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Quão poético o mar, os seus corais... 
Inspirando sonetos e canções
Nas Pessoas, Caymmis e Camões,
Castro Alves, Vinícius de Moraes.
Que seria do mar de minerais
Se não fosse a micro-refinaria
Que respira, no mangue, a geologia
Sulfurosa biota à lama presa?
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

A coxia quebrando o vento, o enfado
Na Bahia de jeitos tão diversos
Horizontes longínquos e dispersos
Das planícies disformes de Brumado...
Avistando, inspirado, embasbacado
A colina pequena — a tal coxia —,
O poeta Caetano assim diria:
“Tudo é lindo, mais lindo que a lindeza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia...
                                                           [ou não]”



No horizonte se avista, deslumbrante,
A chapada arenítica azulada.
Imagina-se, ao fim de uma escalada
Ver minérios azuis, irradiantes.
Ao subi-la, percebe-se, ofegante
Um prodígio da microbiologia:
São os líquens, profícua parceria
Respirando, tingindo as redondezas...
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Vinda a morte, eis que a força do calor
É deveras sentida pela ausência
Dele próprio: o calor é a essência
Do viver. É o termômetro do amor.
Quem respira nem pensa: dá calor.
Sem calor, toda a carne expiraria!
E não é a ausência, mas a fria
Mão inábil, a fonte da tristeza.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

E, por fim, há no verso marcação,
Há um ritmo, um pulsar melodioso.   
É um corpo de texto harmonioso
Que provém do bater de um coração.
E, se pulsa, então há respiração.
Sendo verso sem pé não correria.
Sendo corpo, sem ar pereceria
No papel esquecido sobre a mesa.
Reparando melhor, a natureza —
De algum modo — respira poesia.

Vendo o esterco curtindo sob o céu
Vê-se o fim, vê-se meio e o princípio
O infinito, o vivido — o particípio —,
O passado e o futuro do papel.
Na batida inspirada do cordel
O universo — todinho — pulsaria
Pelos versos da linda cantoria
(Sendo o próprio: Palavra, Luz, Beleza).
            Reparando melhor... a natureza,
            Ofegante, respira poesia.



(do livro “O Casamento dos Buritis e outros cordéis”. Sterna, 2005) 

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Você sabia?

Este “Reparando melhor” e o cordel “Se é verdade que tudo é relativo” (clique aqui para conhecê-lo), foram construídos segundo a modalidade martelo agalopado, uma forma fixa de composição poética típica da Literatura de Cordel.

O martelo agalopado apresenta versos metrificados com 10 sílabas, mas com acentuação obrigatória na terceira, sexta e décima sílabas (são essas tônicas que dão o efeito “galope”, como grifado a seguir: É no esterco que tudo principia / Dando à flor a cheirosa sutileza); as estrofes têm 10 versos e as rimas são fixas (geralmente, o esquema é ABBAACCDDC). Especialistas afirmam que o termo “martelo”, neste caso, nada tem a ver com a ferramenta, mas com a pessoa que estabeleceu o decassílabo na literatura, o professor de literatura francês  Jaime Pedro Martelo (1665-1727).

A graça de escrever ou cantar um martelo agalopado é justamente dizer algo interessante dentro desse esquema rígido, uma tradição herdada da literatura oral europeia. Não é à toa que as pelejas entre os repentistas são chamadas de desafios. Se escrever um martelo já é difícil, imagina improvisar, diante do desafiante e de uma plateia atenta! É por isso que tanto admiro esses artistas populares.

Saiba mais:



PRS
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Basta clicar aqui:

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Licença Creative Commons
O trabalho REPARANDO MELHOR, A NATUREZA, DE ALGUM MODO, RESPIRA POESIA de Paulo Robson de Souza foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

4 comentários:

  1. Meu querido, ainda não tinha comentado sobre a sua genialidade. Gostei muitíssimo do Blog e pretendo usá-lo quando eu for para a sala de aula. Sobre este cordel, sem palavras... é realmente lindo!!! É o que sempre digo, tudo depende do OLHAR... Bjs e sucesso. E eu daqui, vou acompanhando...

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  2. Olá Marlene, grato pela consideração de sempre. Suas palavras me animam. Abração!

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  3. Rapaz, conhece o ditado: isso é briga de cachorro grande? compondo ou ao vivo o martelo agalopado não é desafio pra qualquer um. Muito talento meu amigo. Veja o trabalho desta menina, Francisca Araujo, de Iguaraci, Pernambuco e alguns amigos dela que vivem se desafiando no face, uma guerra gostosa. Elias Borges

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  4. Olá poeta Elias! Grato por suas animadoras palavras, pela atenção e apreço à Literatura de Cordel.
    Sobre a Francisca Araujo, vou tentar localiza-la.

    Abração

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