Para Rubem Alves
Era uma
manhã das de sempre
num capão do Pantanal
ou talvez na Bodoquena...
– não, não sei bem o local.
Era uma manhã confusa:
meio rara, algo banal.
O sol se partia em mil
nas gotas frescas do orvalho
as árvores bocejavam
balançando os longos galhos
a taboquinha era flauta
e os grilos eram chocalho.
Era farta primavera:
abelhas pra todo lado,
frutos davam a sua carne,
flores jorravam melado...
Troncos cuspiam filhotes:
patinhos pretos, dourados.
Como
diria o Chicó
que
mora dentro de mim,
não sei
bem como é que foi,
eu só
sei que foi assim
que o Caburé exclamou
dentro
de um alto angelim:
– Ai,
que bom espreguiçar,
sestear
depois que caço...
Morar
numa cobertura
de um
tronco, ser um ricaço...
Como é
bom, mesmo miudinho,
ser o
tal... rei do pedaço.
O Falcão-peregrino retrucou:
– Eu
sou o dono do pedaço!
Fora!
Xô, seu... pigmeu.
Sou
letrado, caburé,
no
continente europeu.
Olhe
bem pras minha garras...
repare
que o rei sou eu.
Entra o
Pica-pau-rei:
– Eu
também tenho direito
sobre
essa tosca madeira
pois
cheguei aqui primeiro.
Não
estou pra brincadeira.
Se
vocês quiserem briga,
eu
derrubo a mata inteira!
– Quando nem buraco havia
comecei a trabalhar
nessa vil madeira morta
para o oco iniciar.
Sou do desenho animado,
mereço me instalar.
– Eu tenho um bico
alvinegro,
a mais vermelha das
penas,
lindos olhos, asas
verdes...
Sou artista de cinema!
O buraco é meu, pois sou
a dona da Bodoquena.
– E daí, qual é o
problema?
Parem de falar besteira.
Sou a maior e a mais
linda
das araras brasileiras.
Trago o azul do mar nas
penas
e o sol nas minhas
olheiras.
– “Peraí”, gente. Qual
é?
Esse oco é meu. Tem
mais:
antes de 1500
já era o rei dos
quintais.
Além disso, eu sou
cantiga
do Vinícius de Moraes.
– Alto
lá! Êpa! Tem gente!
Eu
reformei este ninho.
Botei
fora o caburé.
Enxotei
o gaviãozinho.
Daqui
não saio. Reparem
que eu
sou um nobre vizinho.
– Cal-cal-calma
lá! Nesse oco
botarei
meus dois ovinhos.
Afinal,
tenho olhos verdes
neste
rosto tão branquinho...
Trago o
azul, tenho o dourado
da
Seleção Canarinho.
– Chega
pra lá, sua amarela!
Cruza
de águia! Monstrengo!
Esse
oco é meu! Só meu.
Chega
de história e de dengo.
Sou o
rei dos céus. Mereço
pois
sou forte, sou Flamengo.
– Sou o dono do buraco
meu povo amado, minha
gente,
pois sou bom de bico, e
até
ao comer, planto as sementes.
Não bastasse isso, inda
sou
amigo de ex-presidente.
O urutau que a tudo via
com sua
sábia paciência
gritou
para a bicharada:
– Que falta de
complacência.
Há lugar pra todo mundo
quando se tem
consciência!
Com
seus olhos semi-abertos
para a
luz, bico empinado,
Urutau falou, de um galho,
dormindo
meio acordado:
– Essa briga é porque o
mundo
está desorganizado.
– Cada qual com seu
papel!
Todos têm o seu valor!
Todos são nobres e
sábios.
É bonita toda cor!
Não existe tolerância
quando não existe amor.
– Organizando a bagunça:
buriti pra canindé,
pro pica-pau: bocaiuva;
angico pro caburé.
E pra grande araraúna,
manduvi será chalé.
– E se o tronco for o
mesmo
disputado por vocês
numa mesma primavera,
é preciso sensatez.
Se não chegou a sua
hora,
então, que espere a sua
vez.
– Ou então, façam o
seguinte:
quando o tempo for
passando,
de pata em pata – ou de
bico –,
que o ninho vá se
moldando
segundo a necessidade,
de acordo com seu
tamanho:
– Vem, primeiro, o
pica-pau;
em seguida o tronco
ampara
a nobre maracanã...
Tantos caberão, tomara:
o tucano, o urubu
e, por fim, a grande
arara.
– Vamos combinar uma
coisa?
Façam a reprodução
em períodos separados,
com farta alimentação...
Cada qual no próprio
tempo...
Troncos à disposição.
Em meio
a tantos doutores
de
olhos grandes, acurados,
foi o
urutau quem viu,
estando
de olhos fechados:
– Há lugar pra todo
mundo
num mundo civilizado!
– Discriminar é julgar,
antes que o tempo
revele,
a história de cada um
e a cultura que se
expele.
Não se conhece por fora
o que está dentro da
pele.
– Há lugar pra todo
mundo:
branco, preto, azul,
dourado...
Sempre haverá um
cantinho
no ambiente equilibrado.
Há lugar quando, pra
todos,
direitos são
respeitados.
Vendo,
enfim, que a boba briga
encontrou
um bom final,
o tal
“pássaro-fantasma”
dos
índios, o urutau,
voltou
a dormir, esguio,
disfarçando-se
de...
pau.
• • •
Como
diria o Chicó
que
mora dentro de mim,
não sei
bem como é que foi,
eu só
sei que foi assim
que uma
corriqueira história
encontrou
seu próprio
fim.
Os Reis do Pedaço - Detalhe de aquarela de Ligia Zeolla Vieira |
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Notas:
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Cordel originalmente publicado no livro Poesia Animal (2003), com Sidnei Olivio
Apresentado em 13 escolas de Campo Grande por atores amadores (alunos dos cursos de Ciências Biológicas, Artes e Pedagogia/UFMS, sob direção de Paulo Paes), dentro do projeto A Poesia É animal na Rede Estadual! (2004), realizado com apoio do FIC/MS.
Excertos publicados na Ciência Hoje das Crianças, n° 214 (especial Biodiversidade), julho de 2010. Ilustrações de Rogério Coelho.
não me canso de ler
ResponderExcluirGrato por acolher este trabalho, Alessandro! Grande abraço.
ResponderExcluirLindo lindo!!!
ResponderExcluirUm abraço da turma de Pedagogia UFMS/CPAQ!
Grato, Kelvia! Foi uma emoção rara a que senti ao ler este poema para a sua turma! Inspirador! Abraço.
ExcluirA revista parece ser destinada a que tipo de leirot?
ResponderExcluirOlá! A Revista é mais indicada para crianças leitoras e pré-adolescentes.
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