Guardei um
pedaço
De
Montanha em mim
(A
cidadezinha
– Era uma
cidadezinha quando a senti –
A
cidadezinha
Do norte
capixaba).
Havia um
circo troncho
Palhaços
da melhor estirpe, calhambeque explodindo
Leões,
A
trapezista
E a
tristeza da partida pela estrada poeirenta
Do circo e
do circense que nele morreu...
–
1969? Não me lembro bem: moramos nesse lugar ígneo entre 67 e 70 (sou de 61).
Aliás, uma das poucas lembranças com fundo musical que tenho: “California
Dreams” e o circo trilhando a estrada poeirenta para além do rio...
Carros
eram lavados no rio. Caminhões também... Mais que a lembrança da imagem, me vem
o forte cheiro de combustível boiando, arco-íris deitado nele (o rio)...
Havia
um grande lajedo, nele escrito “Só cristo Salva” e “Casas Cazelli” (juro que
não é merchandising!). Nessa casa havia tecidos chinfrins postos em
ziguezague sob a marquise, mais enfeitando do que expondo a mercadoria.
Flashes
que não me saem da memória, não sei porque, de tão insignificantes: a passagem
de uma perua com quatro ou cinco japoneses de óculos, magros e altos indo ao
lajedo instalar acho que uma antena (primeira vez que vi pessoas de origem
asiática, só outra novidade me foi maior: ver o teco-teco logo após o pouso,
que meus amigos diziam ser de papelão). O sangue de um advogado na areia da rua,
morto pelo pai da minha colega de escola por causa de desavença de jogo de aposta,
corrida de cavalo, algo assim – naquela tarde o sino da igreja soou como nunca
e para sempre nos meus ouvidos, e senti pela primeira vez uma tristeza pela
morte alheia que eu não sabia explicar... O vizinho cego por uma pedra (ao
marretar paralelepípedos de granito) cantando hinos de louvor em um culto...
Outros
instantes que nunca me esqueci: a menina morena, magrela e de testa larga (a
apelidamos de Testa de Boi Gir, que malvadeza!), essa menina sendo levada à
nossa escola pelo pai numa charrete muito bonita, cavalo castanho “esquipando”
como quê na nossa rua. Minha mãe voltando tarde da noite da casa do vizinho que
tinha televisão, encantada com a chegada do homem à Lua... As meninas da casa
da frente ‒ Gilca, Milca, Ilca e mais duas cujos nomes me esqueci, todas
atingidas por essa decisão patriarcal de nominar ‒ brincando de “drama”
(teatrinho) com minha irmã Márcia na nossa garagem. Minha coleção de maços de
cigarro (cheirinho bom!) escondida sob a geladeira a querosene que sustentava
um rádio cantando “90 milhões em ação” depois de a população largar a TV da
praça em festa, após o Brasil 4 x 1 Itália; a bomba de 500 sendo estourada por
um torcedor (tinha esse nome porque era a mais cara de então; só os adultos
podiam comprá-la, de tão perigosa).
Do
amigo cabeludo e de olhos verdes do meu tio Britto cagando no buraco errado após
uma bebedeira – o bidê que eu tanto brincava de alguma coisa com seu
chuveirinho ao contrário –, disso eu também não me esqueço. Nem da menina Alba
Valéria que morava na casa ao lado e seu irmão Alvinho que, pura malvadeza, o
apelidamos de Bufa Torta porque passou a mancar após pisar num caco de vidro.
Nem da espinha madura (que eu morria de vontade de espremer) na face da minha
querida professorinha Irmã Paulina, nem das músicas que entoávamos em fila no
pátio do Colégio Sagrado Coração, sob o olhar cuidadoso da diretora, uma madre
de óculos intimidadores cujo nome esqueci: “Desperta no bosque / Gentil
primavera / O ar está perfumado / Com flores de manacá / Trá-lá-lá-lá-la
Lá-la...”, ou ainda “No Inverno a cigarrinha / Deixou então de cantar / Procurou
a formiguinha / Para a sua fome lhe mataaaar”.
Em
Montanha desse tempo dormiam cinco a dez toras de madeira no fim da nossa rua,
talvez abandonadas por alguma serraria. Nelas moravam as “batixós” (como
chamávamos as lagartixas), que vez em quando eram vítimas do nosso “bodoque”
feito de câmara-de-ar da melhor qualidade, a tal borracha que não se cansava. O
meu irmão Jairo e o inseparável primo Ciro eram os campeões na caçada aos
pobres bichinhos que, junto a calangos e algumas rolinhas, proporcionavam-nos deliciosas
fritadas, assim como os tizius que fazíamos se espatifarem no muro branco da
garagem de ônibus após afugentá-los.
Havia
na porta de casa um fícus
indiano cercado por quatro tábuas que eram bancos – lembrei-me agora. No
quintal, um pé de maçã muito esguio, crescendo no centro de um caqueiro (termo
baiano para o recipiente de barro usado para evitar formigas, como se um fosso)
e que se recusava a frutificar. E um porco duroc que, de tão grande, meu
pai se equilibrava de pé no seu dorso, para se exibir. Havia um viveiro onde eu
dava leite aos filhotes de tatu-galinha e cuidava de um coelho alaranjado e da
galinha rhodes que Sinhô Mascate me dera. Num canto havia bananeiras
onde eu e meus irmãos ficamos seminus, lambuzados de BHC com banha-de-porco, um
disparatado tratamento para sarna da época que deve, sim, ter-me deixado
sequelas. Em frente à cozinha havia uma espécie de galpão revestido de cimento
queimado onde escorregávamos no dia da lavagem, usando para isso água retirada
de um poço com bomba manual.
De
fato, o ponto de vista é único, intransferível: são dos meus olhos e,
certamente, de nenhuma das outras crianças que éramos, a imagem que ficou de
uma tarde típica de verão, sol seguido de chuva – casamento da viúva – em que
encontramos gatinhos recém-nascidos em uma carcaça de carro abandonada perto do
cinema. E é só minha essa lembrança, porque foi em mim que doeu: a matinê que
não houve, porque minha mãe não deixou que uma prima grande e de cabelos
bicolores me levasse ao cinema – certamente por falta de dinheiro – e eu chorei
muito... Como chorei no dia em que meu primo Carlos me sentou sobre a chapa
quente do fogão de lenha...
Dessa
época não há fotografias, porque a novidade era o tal monóculo que o tempo e os
fungos logo se incumbiram de pulverizar os pigmentos depositados sobre o
acetato.
Agora
vem minha mãe, janeiro de 2018, me dizer que passamos fome por causa do
abandono do nosso pai – que foi cuidar de negócios em Linhares, é bem verdade;
o pai que era ao mesmo tempo amoroso, devagar, trabalhador, divertido, bruto,
sonhador, exigente, esquecido e aventureiro nos deixou nessa situação. Ela me
conta da vizinha Dona Regina (de Seu Manoel, segundo me disse) que nos trouxe
comida por cima do muro, uma vergonha para quem tivera fazenda no sudoeste da
Bahia e uma infância de fartura – própria de quem tem chuva e terra para
cultivar. Da grande dívida numa vendinha que funcionava numa espécie de quiosque lá para as bandas do bairro
Fundão cujas paredes e as próprias rodas eram de madeira, isto eu me
lembro. Mas a história da comida por cima do muro me doeu fundo, doutor.
PRS, 18.1.2018
(Da série Poesia Todo Dia!)
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