Para Deborah Colker e companhia;
para Yara Medeiros;
para Yara Medeiros;
em memória da professora
Tania Mara Simões do Carmo
(que me ensinou os caminhos do manguezal).
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
"O Cão sem Plumas" (1950),
de João Cabral de Melo Neto
I.
Nascente
________________________
Rio nascido é coisa sonhada pela
chuva;
gestado pelo chão morno que abriga
radículas púberes
(pois que solo glabro não rebenta).
Rio que pulsa vem de olhos
plantados no palco e nas serranias.
Rio que pulsa brota de olhos opacos
(luz em caminho contrário).
No palco, sombra e silêncio lutam com
seus opostos;
harmonizam e se alternam. Dançam a
vida; o que da vida
Treze corpos treze almas nascem do pó
primordial
feito mamulengos assoprados pelo que
se cria.
E descem o proto rio. E se tornam rio
(sonhando desembocaduras).
Tristura não tem cor; gastura é som
extraviado
que me arrepia os dentes –
sugere o espetáculo
que me peja de rios jururus.
II.
Amphi
________________________
Dança e luz em movimento.
Juntos: imagem plana e matéria que
ocupa espaços.
Planuras se curvam sobre corpos –
eles próprios, tela e
anteparo.
Jias percorrem o palco da vida em
busca d’água.
Diálogo ora surdo, ora ensurdecedor
de jias, cururus; luzes, sons;
movimentos e matéria;
lama e alvuras;
A maestria do cinemato-
gráfico
e a exatidão do
corpo
sedimentar.
III. ’Y
________________________
A artéria da terra é, também,
caminho de gentes sobre ygaras.
Outrora: vivenda de capivaras
(kapibara
‘y-pe
Fala por si o rio,
gota a gota esvaindo-se
nos detritos nele acumulados.
Clama(m).
IV. Estio
________________________
Ante a aridez do ar
(rio seco no céu),
a epiderme da terra
e a pele cafuza
padecidas; craqueladas.
e a gente que nele vive chora a falta
de rio
por nascer.
V.
Queima
________________________
O inadmissível:
a morte de um rio; a pele descamada se
rasgando
em meio ao verde frescor.
O inconcebível:
Um espectro (da gente trincada)
mirando a cacimba
sem reflexo, sem eco,
sem água azul.
VI. Trama
________________________
A folha a palha a trama
o homem-palha
Canavial há de ser alegoria para
treliças que confinam
o olhar.
VII.
Retrocessão
________________________
Acaso e descaso largados na ygara
descem o rio rumo ao salobro lugar.
Sonho denso
do que não suportou
VIII.
Uçá
________________________
Larvas famintas pedem estuário:
sentimento vário,
querem ser caranguejo. Uçás grávidos
querem ser mar.
Homem-caranguejo-uçá
– cada
vez mais –
Dentro do caçuá:
incontinência da música; feitura da
própria prisão.
Tempo para trás.
Na tela grande, Assis presente(s).
Assaz competente(s)
em cuidar e
retroagir.
IX. Mangue
________________________
Rhizophora é
cortina do que não se vê e daquele que vê.
Rhizophora mangle: copas em palafitas
de cerne duro, vermelho e firme –
escora de aspirações.
É fio que entrelaça
vidas: craca, caranguejo, peixe,
camarão,
gente e a matéria borbulhante que os
formou.
Lama fértil é massa podre e seca,
sem o mangue.
Mas a mordaça
imposta ao rio
mata a planta, mata a teia, mata o
homem que espreita.
A casca sangra.
Olhos divisam.
X.
Chama
________________________
Caranguejos de longas, espadadas puãs
Chamam a maré que não vem, fluxo interrompido
por
matacães.
Chama-marés batem no tablado o ritmo
do
desespero.
XI. Pena
________________________
Garças encardidas sobre troncos
cansados de mirar o nada.
Foto: cortesia Cia de Dança Deborah Colker |
Nessa luta inglória,
garças são o chão:
são as árvores:
plumas das árvores:
pena do cão.
Ignorância
é a palavra que resta do
aniquilamento.
XII.
Claustro
________________________
Rewind:
o caçuá-palafita;
o sulfeto da lama impregnando a pele;
o molambo;
De novo: o mocambo perscrutado
por um homem-caranguejo;
homem mastigado.
Homem que se repete em todos os –
pobres –
cantos do mundo.
XIII.
Angústia
________________________
Um barco, foi o que vi. Um barco a
qualificar;
a carregar o degredo
(a lama na face: máscara ou
armadura?).
Porque a foz
é a geografia de costas para o
continente.
No palco, um fio de luz da esperança
de Colker. De João. De Assis. De
Lirinha e Jorge. Do Carmo. De mim.
Foto: cortesia Cia de Dança Deborah Colker |
De todos os rios do mundo.
Porque rio é coisa sonhada pela chuva.
Paulo Robson de Souza
(da série Poesia Todo Dia 2018)
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