sexta-feira, 30 de março de 2012

A PELEJA DA FORMIGA FAZENDEIRA E O BESOURO ROLA-BOSTA

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À memória de Patativa do Assaré, “seu dotô” do Cordel


As aparências enganam
mesmo os mais experientes.
Quem nunca vivenciou
algo delas decorrente
nunca provou, por inteiro,
a condição de vivente.

A natureza está cheia
de exemplos desconcertantes
de como não prejulgar
qualquer ser, o semelhante.
Há lagos lindos, lustrosos
cobrindo o inferno de Dante.

Há também tecidos grossos
tapando poços profundos
que guardam raras essências...
Há vida no barro imundo.
As aparências enganam
desde a aparição do mundo.

Foi por causa dessa história
de só crer no que se mostra
que ocorreu uma briga entre
a formiga e o rola-bosta.
Dizem que a briga idiota
começou com uma boba aposta.

Era uma vez... Não, não. De novo:
Era uma tarde após a chuva.
Um besourão empurrava
esterco sem usar luvas. 
Sem querer, deu um esbarrão
numa formiga saúva.

Que que é isso meu amigo?!
― disse a formiga, espantada ―,
Na sua cabeça chifruda
tem esta merda rolada?
Seu comedor de cocô!
Quer partir para a porrada?

Sentindo-se provocado,
o besouro respondeu:
magricela fedorenta!
Em qual escola aprendeu?
Eu aposto qualquer coisa
que só de ervas viveu.

Topo e dobro o seu valor,
disse a saúva zombando.
Aposto que come esterco,
e faz tudo isso gostando.
Você começa por onde
nós estamos terminando!

Tudo bem, disse o besouro.
Caso eu perca você pode
me montar feito cavalo,
me expiar como a um bode.
Deixo que me ponha um guizo
para que à noite me acorde.

Mas repare bem o mico
que você pode pagar:
ponho bosta em seu nariz,
caso eu consiga ganhar,
esfregando tudo até
que não possa respirar.

Que que é isso, cascudão!
Ra-ra-rá! ― disse a formiga ―
e só para começar:
começou mal essa intriga!
Não tenho nariz porque
respiro pela barriga!

Tenho uns furos pequeninos
nos lados do abdome
chamados de espiráculos.
Como indica o estranho nome,
servem para o ar entrar,
assim como em você, homem!

Segundo: toda a folhagem
que levo com meu labor
para o buraco profundo
é comida de um bolor.
Saúvas cultivam fungo,
são fazendeiras, “amor”!

A nossa colônia é reino
unido pela fartura.
As castas, organizadas,
são uma grande belezura
e a nossa linda rainha
quando voa é tanajura.

Mas você, veja se enxerga!
Não sabe nem cultivar.
Nem sabe o que é uma fazenda,
não sabe o que é um pomar.
Não venha teimar comigo,
vá suas bostas rolar!

O rola-bosta, enfezado,
tentando ganhar a briga
mesmo que, por seus princípios
fosse contra toda intriga,
só pra não perder a aposta
disse à arrogante formiga:

Ai, caramba! Negativo!
Você está equivocada.
Vivo levando este esterco
para a minha filhotada.
Em nada lembra meus hábitos
Quando enfim é alimentada.

Também não tem meu aspecto
pois são larvas, morotós
e se eu não cumprir meu trampo
a coisa fica pior:
não conseguem se empupar,
virar besouros que só!

Enquanto estão no buraco,
merecem todo respeito.
Os meus filhotes são feios
dependendo do sujeito.
Mas pra mim são os mais lindos
seres que têm neste eito.

A formiga percebeu
que estava muito enganada.
Dessas pelotas de esterco
dependia a filharada.
E percebeu que o esbarrão
foi uma coisa não pensada.

O besouro, ao mesmo tempo,
viu que o que era aparente
não aguentou uns minutos
de conversa inteligente.
E que a aposta que fizeram
foi uma atitude demente.

O besouro e a saúva
saíram para os dois lados
como se, em um combate
fossem, os dois, derrotados.
Como, enfim, se desculpar
de um julgamento apressado?

Parando bem pra pensar,
vem a pergunta sem jeito
e também tão natural:
o que é um preconceito?
A pergunta é insistente:
não seria um pré conceito?

A natureza está cheia
de apresentações que enganam.
Resta-nos tomar ciência
das lições que dela emanam
e aprender como nossos erros
― domar as forças que inflamam.

Inclusive é assim também
nossa natureza humana.
É mais fácil prejulgar
do que dar uma semana
para encontrar, num sujeito,
a sua porção bacana.

Mas essa história inventada
não é pra assustar bebês
de besouros e saúvas,
fruto e flor do bem-querer.
Há que se abrir a coberta
sobre esta questão, porque

as aparências enganam
mesmo os mais experientes.
Quem nunca vivenciou
algo delas decorrente
nunca provou, por inteiro,
a condição de vivente.

                  Paulo Robson de Souza
 
Cordel do livro Poesia Animal 
(2003, Sterna e Editora UFMS, com Sidnei Olívio)

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Primeira foto: besouro rola-bosta (coleóptera escarabeídeo), exemplar macho adulto. 
Acima: operária de Atta transportando pétala da leguminosa Senna multijuga para abastecer 
o ninho (para cultivo do fungo). Fotos: Paulo Robson de Souza

8 comentários:

  1. Eu amo essa poesia!!! :))
    Muito obrigada pela criatividade, o humor, a sensibilidade, Paulo!! Bjão!

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    1. Querida professora Mariana, desculpe-me por só ter visto seu comentário agora. Gratíssimo pelo acolhimento a este cordel que gosto muito. Grande abraço a você e todos aí de Vitória, minha amada cidade.

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